15 de mai. de 2012

Com todo o respeito!



           

    Juvenal estava em pé, na varanda, roendo as últimas unhas.
    Foi logo descendo os degraus quando viu o carro de Beto se aproximar. O pessoal que estava na casa também saiu ao ouvir o motor da 4x4.
 – Já temos combustível! Alcancei o posto cinco minutos antes da meia-noite!
 Nora e Calixto queriam tirar as coisas do carro, mas Beto foi imperativo:
  – Como sou da logística, proponho a divisão de tarefas: eu e Juvenal tiramos as coisas, vocês dois arrumam tudo lá dentro.
Todos de acordo, vão para seus postos. Juvenal abre o porta-malas e começa a tirar a bagagem, mas Beto vem pelo lado e o puxa violentamente pelo braço:
– Seu maluco, o que está pretendendo, Juvenal?
– Eu? Nada, do que você está falando?
– Tô falando da vergonha que você me fez passar lá no posto.

– Não tô te entendendo.
– Ah, está sim. Você sabe muito bem o que colocou aí  dentro do porta-malas. Por isso estava tão nervoso pra descarregar as coisas antes de eu ir abastecer. Não queria que ninguém descobrisse essa esquisitice toda!
 – Você andou mexendo nas minhas coisas, seu petulante? Isso é inadmissível! Você não tinha o direito de xeretar os pertences alheios!
 – Pode parar com esse discurso todo pomposo! Eu não mexi nas suas coisas, não!
 – E como sabe o que estou levando aí?
 – O rapaz do posto foi calibrar o estepe e quando o tirou, uma das tuas mochilas caiu, espalhando aquela porcaria toda pelo chão!
– Não acredito! Não me diga que você perdeu tudo o que eu trouxe!
– Não, não perdi nada, mas foi o maior vexame. Juntei tudo aquilo com o cara me olhando torto e pus de volta na mochila de qualquer jeito. Só uma garrafa se quebrou. Mas agora não digo mais nada até você me dar uma boa explicação!
– Não era pra ninguém saber, caramba! Isso é meio constrangedor...
– Constrangedor uma ova! Eu que passei pela vergonha toda e agora você vai me dizer do que se trata essa tranqueira!
– Tá bem, tá bem! Vou contar.
Juvenal avançou dois passos e abaixou o tom de voz:
– Acontece que eu tenho outra profissão, à noite, duas vezes por semana.
– É? Além de tesoureiro da firma você é mais o quê?
– Babalorixá.
– O quê? Tá me dizendo que à noite você vira Pai de Santo?
– Com muito orgulho, sim senhor!
– Não me importo se você recebe caboclo ou pomba gira, mas você tinha que trazer o seu kit no meu carro?
– Não era pra ninguém descobrir.
– Mas por quê trazer tudo pra cá?
– Pra fazer um Ebó.
– Um Ebó?
– É, uma oferenda aos orixás.
– Eu sei o que um ebó, mizinfim! Só não entendo porque trazer escondido até aqui, com tanto lugar pra fazer trabalho por aí!
– Oxum e Xangô me mandaram fazer um ebó em um lugar de mata virgem e com água corrente. Não é tão fácil achar um lugar assim. Estou procurando há mais de um mês. Quando a Nora falou sobre a viagem e a cachoeira, achei que não ia ter oportunidade melhor do que essa.
– E fez a gente de cúmplice?
–  Cúmplice do que? Fazer ebó  é crime? E a liberdade de culto no Brasil?
–  Não sei, mas se é tão normal por que esconder de todos?
– Por causa do preconceito. Não adianta a lei dar liberdade pra você ter sua fé, se a sociedade te rotula pelas tuas escolhas. Eu queria deixar tudo às claras, mas você acha que a diretoria da empresa ia achar normal o tesoureiro ser Pai de Santo? Não posso me dar ao luxo de perder o emprego. A coisa por aí não tá fácil!
– É, eu sei, é complicado, mas pelo menos pra mim você devia ter contado. Você usou meu carro pra trazer a coisa toda! Paramos no comando e o policial podia ter encontrado aquilo tudo. Até explicar, isso ia render conversa!
– Não exagera não, que eu sei que você  também tinha motivos pra se preocupar com a revista do comando.
– Tá querendo dizer o quê?
– Que eu vi onde guarda a arma debaixo do painel. Isso sim ia pegar. Andar armado tá proibido e ter porte de arma hoje tá difícil. Se o polícia te pegasse isso sim seria problema, não meu ebó.
– Acontece que eu sou atirador profissional, amigão. Participo das competições estaduais de tiro. Meu porte é pra praticar esporte e posso andar com a arma. Além disso, ela estava desmontada. Não ia pegar nada.
– Bom, você sabe dessa lei, mas e o policial? Como você disse, até explicar ia render conversa! Além do mais, pra que trazer uma arma no carro?
– Juvenal, não seja ingênuo. Você sai pra viajar num feriado movimentado, vem pra uma região de mata virgem e não traz uma arma? Eu sou filho de militar, conheço a vida desde cedo. Não dá pra dar moleza não. Às vezes é a tua vida ou a do meliante! E aí? O que você faz se no teu porta-malas só tiver um ebó?
– Não vem me avacalhar, não! Respeita minha crença que eu respeito a tua.
– Fica frio, cara. Eu mesmo já fiz uns ebós quando o lance da grana começou a complicar. Não é sempre, mas vou te dizer... Xangô já me abriu uns caminhos.
– É, isso ajuda, irmão... E eu sei que você é ambicioso.
– Como assim?!
– Sou o tesoureiro, esqueceu? Dinheiro sempre passa pelo meu setor. E se não passa, de alguma forma eu fico sabendo.
 – Nunca fiz nada que prejudicasse a empresa. Só que às vezes... Preciso de uma corrida por fora pra resolver os problemas.
– Eu sei, rola muita coisa. Tem que filtrar o que dá e o que não dá pra fazer. 
– É por aí. E relaxa, teu segredo tá guardado.
– Valeu, cara. Só de pensar que a Nora podia ficar sabendo... Ela é a maior fofoqueira da firma... Lá nos Recursos Humanos se sabe de tudo.
– Eu sei, ela não tem trava na língua.
– E conta o conto aumentando um ponto. Mas esse conto ela não conta!
– Não mesmo. Mas diz aí: como vai levar as coisas pra cachoeira sem ninguém ver?
– É aí que você entra.
– Eu? Tá maluco?
– Agora você sabe, ninguém melhor pra me ajudar.
– Se precisar eu também ajudo, rapazes!
– Nora? - em coro.
– Eu mesma, a dos Recursos Humanos! - diz, vindo pela lateral do carro.
Juvenal empalideceu e Beto tentou medir a extensão do problema:
– Há quanto tempo você estava aí?
                        – Isso eu não posso dizer. Pus trava na língua.

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