I
O Conselho da cidade reuniu-se na igreja. Uma balbúrdia. Aguardavam a
chegada do prefeito para esclarecer fatos comprometedores.
Santa Abadia é uma cidadezinha de cinco mil habitantes e está de pernas
por ar por conta de um falatório que abalou as estruturas da sociedade local. Tudo
começou há uma semana, com a notícia trazida pelo Formiga – que leva este
epíteto por ser um trabalhador incansável. Formiga corre toda a região do Vale
do Aleixo vendendo enxovais de cama, mesa e banho.
Sentado no bar do Onório – centro nervoso das informações municipais –
Formiga revelou:
– Ontem vi o prefeito na cidade vizinha saindo de novo da casa da
Lola.
– Quem é ela? – perguntou Onório.
– É uma bem magrinha, quase de meia-idade. Vive sozinha. Dizem que se
mantém em forma porque fez balé muitos anos.
– Uma dançarina, vai ver – disse Tânia, a obesa mulher de Onório. –
Por ali há uns certos clubes duvidosos que contratam moças ...
– E o que me chamou a atenção – continuou Formiga – é que ele lhe
passou um envelope gordo de dinheiro.
– Interessante... – disse Onório. – Mas você disse “saindo de novo”?
– É. Eu já havia visto o carro dele por lá. Então perguntei aqui e ali
e me disseram que ele tem frequentado a casa da moça às sextas.
– Desde quando? – perguntou Tânia.
– Uns três meses...
O Siqueira, vereador da oposição, estava na mesa ao lado e se acercou:
– Não foi quando começaram os sumiços de dinheiro na prefeitura?
– Foi sim. Fiz uma matéria para o jornal – respondeu Edimir,
jornalista chefe da Gazeta da Abadia, que estava no balcão.
– Isto não esta parecendo boa coisa – disse o Siqueira.
– Só digo o que vi – isentou-se o Formiga.
Eu, sentado mais ao canto, continuei quieto. Chego a pensar que muitos
acham que um deficiente visual não ouve. Ou sou invisível. Falam tudo na minha
frente, sem pudores.
No dia seguinte fui à missa de
domingo e um zumzumzum de beatas cercava o padre Bento na porta da sacristia. Ouvi
frases entrecortadas: Isso é uma imoralidade.. é dinheiro público... tinha que
se dar ao respeito... o senhor, como autoridade eclesiástica... zelar pelos
bons costumes...
Na segunda fui para o trabalho. Sou telefonista da Câmara Municipal.
Os vereadores estavam em polvorosa!
– Se for confirmado, vamos pedir um impeachment deste salafrário! –
dizia o líder da oposição.
– Eu já pedi que ele voltasse da capital para esclarecer tudo – dizia
o vereador da situação. – Ele garante que isso não passa de um mal entendido.
Formou-se uma facção para angariar apoios estratégicos no caso do
vice-prefeito assumir.
– Temos que agir rápido. Falar com os empresários locais e com os
sindicatos – dizia o vice.
A Gazeta da Abadia se apressou em publicar um editorial: “... e estes
fatos graves têm que ser devidamente apurados perante os contribuintes. Há
testemunhos que comprovam as alegações de mau uso do dinheiro público...”
A coisa tomou corpo.
O delegado foi pressionado a abrir um inquérito. Ele é cunhado do
prefeito e disse que primeiro vai ouvir os envolvidos informalmente. Foi
achincalhado na porta da delegacia pelos vereadores da oposição. Tudo filmado
pela TV do Vale e depois irradiado pela Abadia FM 110 Mh.
Organizaram uma passeata. A população compareceu em peso. Os
comerciantes fecharam as portas temendo saques. O bar do Onório virou um centro
estratégico. A oposição pressionou o Edimir a entrevistar a dançarina antes
do retorno do prefeito.
– Assim teremos provas mais
contundentes – diziam.
A cidade se incendiou.
Ontem o prefeito voltou e me disseram que havia um comitê com faixas
na porta da prefeitura: “Queremos nosso dinheiro!” “Ninguém ficará impune!” e
por aí vai. E o Edimir foi crucificado porque não obteve a entrevista.
O prefeito não deu declarações. Seu porta-voz avisou que amanhã haverá
uma reunião do Conselho da cidade na qual o prefeito vai se manifestar.
II
Eu cheguei cedo e a igreja já estava lotada. O Conselho dentro e o
resto do povo fora. Deram-me um lugar na primeira fila. Será que pensam que eu
não ouço de longe?
O prefeito acaba de chegar e o padre tomou a palavra:
– Caríssimos, vamos ouvir as declarações. Peço a todos que se sentem e
respeitem a casa de Deus.
Fez-se silêncio. O padre passou o microfone ao alcaide:
– Estou aqui, de boa vontade, para esclarecer qualquer mal entendido
que possa ter surgido.
– Podemos fazer perguntas? – indagou uma voz vinda do fundo.
– À vontade – disse o prefeito.
O líder da oposição se levantou, pomposo:
– Senhor prefeito, os cidadãos abadienses estão aflitos. Há motivos
para acreditarmos que o senhor anda desviando dinheiro público e o entregando a
mulheres de conduta, digamos, duvidosa. O senhor confirma estes fatos?
– Absolutamente, não. Jamais faria algo assim.
Edimir se adiantou:
– A Gazeta de Abadia publicou uma matéria, de fonte segura, na qual revela
que o senhor foi visto reiteradas vezes na casa de uma... dançarina, dando-lhe
gordas quantias em dinheiro.
– O senhor deve estar se referindo à Lola...
– Exatamente – se apressou a líder das beatas.
– Bem, eu estive com ela, de fato.
– Estão vendo? – gritou o vereador da oposição – o suado dinheiro dos
senhores deve estar indo para as mãos de uma...
– Hum hum! – fez o padre.
– Mas a Lola não é dançarina – retomou o Prefeito. – Ela estudou balé
clássico muitos anos, mas não atua profissionalmente.
– E o senhor deu dinheiro a
ela? – perguntou a beata mor.
– Dei, sim.
– Estão vendo? – gritou o vereador da oposição, como um disco
quebrado.
– O senhor pode nos dizer por
quê? – perguntou o Siqueira.
– Foi dinheiro meu,
pessoal.
– Tem certeza que não estava pagando pelos ‘serviços’ da moça com
dinheiro público? – indagou o vice-prefeito.
– Tenho. Ela não me prestou nenhum serviço e eu não uso dinheiro público
para assuntos pessoais.
– Então admite ao menos que tem
um envolvimento com ela? – retornou a beata.
– Não. A Lola é minha prima em
segundo grau.
– Mas ser prima não significa
que...
– Eu estava somente devolvendo a ela uma quantia que tomei por
empréstimo. E esse dinheiro nada tem a ver com os sumiços de verbas daqui.
Aliás, acabo de voltar da capital. E a perícia confirmou a identidade do
titular das impressões digitais achadas no cofre da prefeitura. Já inteirei o
delegado dos fatos e neste momento o indivíduo está sendo levado à delegacia.
– Quem é ele? – perguntou Edimir.
– É alguém de fora. Chama-se Aristo e prestou assistência aos nossos
computadores numa situação emergencial.
Fez-se silêncio e ninguém mais fez perguntas.
– Tendo sido tudo esclarecido – finalizou o prefeito – asseguro aos
presentes que os cidadãos abadienses podem dormir tranquilos. Espero que voltem
à vida normal.
O líder da oposição não disse uma palavra. O vice-prefeito, idem. As
pessoas começaram a sair.
A beata mor cochichou com algumas seguidoras:
– Só não ficou claro se ele está de enrosco com a Lola ou não.
O prefeito ouviu. E pelo tom de voz, ficou irritado:
– Minha senhora, com quem eu me enrosco é problema meu. Mas lhe garanto
que não é com a minha prima. Eu não poderia.
A beata, indignada, quis ir a fundo:
– Não poderia? E por quê?
– Porque sou gay.
E a beata desmaiou.
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