Outra
madrugada insone, intranquila. Além das noites difíceis, ruídos noturnos a
perturbavam. Ouvia sons esparsos pela sala várias vezes por semana. Secos,
abafados. E estalos na madeira do assoalho. Não ligava muito, mas ficava
intrigada.
Helena
não descansava. Sentia-se exausta pela manhã. Não só pelas sucessivas noites
perdidas, mas porque encarar mais um dia lhe pesava. Não vivia a realidade para
a qual tinha se preparado. Achava quase tudo e
todos, medíocres. Desprezava a superficialidade das relações humanas e o
anódino cotidiano. Vivia enfastiada da sociedade fútil.
Tantos estudos, tanta formação e seu mundo não tinha mais
interlocutores.
Ao passo em que seu desalento
pela visão reducionista das pessoas crescia, seu interior empobrecia. Parecia ser um efeito colateral. Percebera isso havia uns meses. Já não
tinha insights, nem tantos argumentos. O brilho que irradiava foi
ofuscado por uma densa bruma de ambiguidades. Suas ideias se amalgamaram, sua
percepção obscurecera. Sua erudição se esvaia. Não discernia o preto e o
branco. Seus conceitos estavam cinza.
Ela se
livrou dessa indigesta constatação ao ser arrancada da cama pela realidade. Pela
somítica vidinha azeda. Adelaide
entrou no quarto dizendo:
– Dona
Helena, dá licença? Procurei os livros, mas não achei. Olhei a casa toda.
A senhora não emprestou pra alguém?
– Não,
Adelaide. Eu não teria a quem emprestar. E o Cd?
– Nem
sinal dele.
Não
havia dúvidas: suas coisas estavam sumindo. Seus livros de grego, seu Cd do
Vivaldi – não sabia como. Ninguém tinha a chave do apartamento, nem Adelaide
que trabalhava lá há cinco anos. Não, por certo não foi Adelaide.
Imaginou
que se a lógica não podia esclarecer o sumiço das coisas, talvez devesse
considerar outras hipóteses... Mas seria tão improvável...
À noite,
em meio a mais uma insônia, ouviu os tais barulhos secos. Foi até a sala, olhou
a casa toda, mas não viu nada nem ninguém. Só encontrou um livro fora de lugar.
Uma edição antiga dos Diálogos de Platão. Não havia tirado o livro da estante.
Uma
sensação horrível a afligiu. Decidiu ligar para a amiga com quem segredava em
alguns momentos.
– Oi,
Ana.
–
Helena! Sumida há semanas!
– Só
trabalho. Estava dormindo?
– Não.
Você parece preocupada...
– Estou
intrigada com uns sumiços aqui em casa. Meu Cd do Vivaldi, dois livros de grego
e agora achei um livro de Platão fora da estante.
– Acha
que alguém entrou aí?
– Não.
Ninguém tem a chave e a portaria tem câmeras e é segura. Pensei outra
coisa. Tenho ouvido ruídos noturnos e as coisas têm sumido desde que esses sons
começaram.
– Não
entendi. Em que está pensando?
–
Fantasmas.
–
Fantasmas? Você, tão culta?
–
Fenômenos sobrenaturais existem por aí aos montes. A ciência é que
não evoluiu o bastante para provar questões metafísicas, o que não significa
que elas não existam.
– Lá
isso é verdade... Mas por que os fantasmas iriam pegar seus livros raros e
seu Cd clássico? Que tipo de fantasma faria isso?
–
Talvez sejam fantasmas eruditos.
–
Fantasmas eruditos?
– Pense
bem: filosofia, música e línguas clássicas... São preferências de quem tem
certa erudição...
Helena
foi cortada pelas duas badaladas do relógio.
– Ana,
eu queria conversar, mas, pensando bem, é tarde. Que tal jantarmos no sábado?
– Ótimo.
Chego aí às oito. Durma bem com seus fantasmas!
– Vou tentar.
No dia
seguinte saiu do trabalho, comprou um pinot noir, uma salada orgânica e
uma pasta grano duro ao molho de funghi seco. Procurou distrair a
mente. Jantou saboreando os contrastes e depois separou dois livros para o dia
seguinte. Deixou-os na mesa. O vinho a ajudou a dormir. Pela manhã, os livros
de História da Arte haviam sumido!
Ficou enfurecida.
Procurou em todos os cantos. Nada. Parou no meio da sala e se pôs a gritar:
– Vocês
não têm vergonha de levar meus livros e Cds? Vou instalar câmeras aqui e de
alguma forma vou recuperar tudo o que levaram! Não pensem que isto vai ficar
assim!
Saiu
batendo a porta e se odiou por ter gritado com fantasmas. Isso não fazia
qualquer sentido.
Era um
típico sábado de verão, quente e ensolarado. O calor do sol lhe acalentou o
corpo e sentiu-se melhor. À tarde voltou para casa e passou pelo sono. Acordou
ofegante. Resgatar os sonhos lhe era raro. Esforçou-se para puxar os detalhes,
como quem monta um quebra-cabeça. Ela andava numa avenida larga e movimentada.
Milhares de indivíduos disputavam espaço na calçada. Uma névoa azul espectral
saía dos corpos de alguns e como um grande sugadouro, ia engolindo a todos,
deixando a metrópole vazia. As pessoas nada percebiam e iam sendo levadas. Espiralavam
até desaparecer no centro do sumidouro e se tornarem cidadãos invisíveis. Helena
era a única que via o estranho fenômeno. Ela correu e se escondeu sob uma
marquise. A névoa azul veio na sua direção. Ela saiu em disparada e nesse
momento acordou.
Talvez
a lembrança seja mais do que um sonho...
Talvez
uma mensagem. O vazio que identificava nas pessoas seria explicado: elas não
se encontram no mundo real. Estão suspensas pelo sugadouro. O que Helena via em
seu cotidiano chocho, eram carcaças ocas, zumbis andando de lá pra cá, vivendo
sem sentido.
Esforçou-se
para lembrar mais detalhes. No estranho sonho, a sociedade era autora e vítima de um processo autofágico. E ela sabia, de alguma forma, que havia algo mais. Pensou
nos sumiços. Havia uma relação entre os livros e Cds desaparecidos e seu
intelecto ofuscado.
– Isso
deve ser obra deles. Claro, eu me lembro, eram eles os criadores da névoa
azul! Os fantasmas eruditos! Eles pairavam atrás das pessoas. E querem me tirar
tudo o que conquistei: cultura, discernimento... Eles provinham do centro do
sumidouro. Lá, no olho daquele buraco
negro deve estar toda a sabedoria das vítimas sorvidas pela névoa azul.
Sentiu-se
desolada.
Será esse o destino do mundo? Talvez, se os fantasmas eruditos almejarem o
aniquilamento do pensamento, da razão e dos saberes existentes.
Quem
são eles?
O som
do interfone a trouxe de volta à vida:
– Dona
Helena, tem uma encomenda aqui na portaria pra senhora. Vou pôr no elevador.
Helena
pegou o pacote e viu um cartão de Ênio.
Um amigo de quem não tinha notícias havia seis meses. Junto, ele lhe
enviara uma rara e valiosa edição contendo o “O Retrato Oval”, de Edgar Allan
Poe, com a qual fora contemplado ao término de seu curso em Yale. A dedicatória
quase saltava da primeira página:
“Este
é pra você, amiga! Sei o quanto vai amar esta raridade! Ele lhe trará grandes e novas riquezas! Arrume um lugar de destaque para ele na biblioteca,
pois na sua mente brilhante mais algum
saber não ocupará espaço!”
Helena folheou o livro por alguns minutos e o
fechou. Ela soube naquele momento que teria que escolher: acreditar em Ênio ou
continuar minguando até se tornar como tantos, um cidadão invisível.
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