Paula fugiu da tarefa por três anos e agora iria enfrentá-la. As duas
caixas empoeiradas a esperavam.
A mudança para a nova casa lhe exigiu uma filtragem nas tranqueiras
acumuladas. Em dois dias estaria começando uma vida nova e só pretendia levar o
essencial. Uma vida boa é uma vida simples. Os descontos eram dados a
algumas peças de valor estimativo.
Sentou-se com as caixas à frente. Sua mãe só falou sobre elas antes de
partir, quando a chamou ao pé da cama. Uma daquelas conversas para as quais
nunca estamos preparados. O coração de Paula bateu acelerado. Medo de uma
revelação de última hora? De escancarar as culpas que guardara tão bem nas
ultimas gavetas da mente? Medos...
Mas a conversa foi branda. Sua mãe foi direto ao ponto:
– Tenho no sótão duas caixas que quero que
guarde.
– O que tem nelas?
– Cartas e papéis. De sua avó.
Paula não perguntou nada. Simplesmente concordou em manter as memórias
que jaziam tanto tempo enclausuradas. Passaram-se os anos e não teve coragem de
tocar nelas. O que poderiam conter que lhes conferisse tanta importância?
Talvez devesse somente tirar o pó das caixas e levá-las na mudança. Um
dia com calma olharia os seus conteúdos.
Pegou um pano e as limpou. Mas uma força a impediu de tornar a
guardá-las. Não ia adiar mais. Sentou-se novamente.
Ao abrir a primeira caixa se deparou com fotos de lugares visitados, de
parentes e amigos, de aniversários e casamentos da família. Não havia nelas
nada de diferente. Eram apenas fotos normais, de tempos idos. A segunda caixa
continha cartas e um diário. As cartas eram escritas em papel de seda fino,
amarelado pelo tempo.
A princípio sentiu-se incomodada em esmiuçar coisas particulares de sua
avó. De certa forma era uma invasão de privacidade. Deveria?
Mas a mente nos fornece boas escusas quando queremos algo movidos pela
curiosidade. Afinal, que mal haveria em ler algumas cartas antigas, que não
teriam mais destinatários?
Abriu o primeiro envelope. A
carta fora escrita com caneta tinteiro e com caligrafia impecável. Era uma missiva
de amor. Sua avó, dona Augusta, se correspondia com Henrique de Siqueira Neves.
As demais cartas também eram dele.
Paula sabia que sua avó se casara
com o primeiro e único namorado – o seu avô. Ao menos essa era a história
contada através das gerações. Agora viu que existia outra parte da juventude de
dona Augusta, que ficara guardada a sete chaves.
Lendo as cartas de Henrique e o
diário de Augusta pôde reconstruir a história:
Henrique, advogado recém-formado,
foi viver em Campos de Jordão por uns meses, acompanhando sua mãe que se
recuperava de um problema de saúde. Lá conheceu sua avó – à época com dezessete
anos – e ambos se apaixonaram.
Como ditavam os costumes dos anos trinta,
Augusta só teria permissão para namorar aos dezoito. Então forjavam encontros
furtivos que eram marcados por promessas de amor eterno. Viveram assim por seis
meses. Um amor idílico e a julgar pelas cartas, verdadeiro. A jovem enamorada esperava
ansiosa por seu aniversário, quando seu amado poderia pedir permissão a seu pai
para “lhe fazer a corte”.
Mas o destino interferiu.
Henrique, de família influente, foi convidado a exercer um cargo político
importante na capital. Advogado jovem, teria aí um impulso ímpar no seu início
de carreira. Com sua mãe em melhores condições de saúde, pôde deixá-la com uma
governanta e voltar à capital.
Henrique jurou à Augusta que iria
a Campos uma vez por mês para vê-la e para visitar sua mãe. E que em meados do
ano seguinte, já com sua posição política consolidada, a pediria em casamento. Nos primeiros meses ele cumpriu a
promessa. Os encontros eram apaixonados e estavam certos de que o
amor que sentiam era para sempre.
Mas depois Henrique não voltou.
Escreveu cartas pedindo que o perdoasse, pois os compromissos políticos lhe
impediam de viajar. Pediu a Augusta que o esperasse, pois era uma fase
difícil, mas o amor a superaria.
Pouco depois, a mãe de Henrique se
recuperou e voltou à capital. Augusta ainda nutriu esperanças por algum tempo.
Mas as cartas rarearam e as palavras de Henrique foram perdendo força. Decorrido
pouco mais de um semestre, Augusta conheceu Armando – seu avô – e com ele se
casou.
Sua avó guardara uma única foto
de Henrique em seu diário: ele na carruagem indo para a estação, para voltar à capital. Mal
dava para ver seu rosto, mas era um símbolo de seu amor que partira para
sempre.
Henrique de Siqueira Neves...
Paula tinha a impressão de já ter ouvido esse nome. Abriu a Internet e se pôs a
pesquisar. Foi fácil: ele havia julgado um caso famoso de licitações
irregulares na gestão de um político local. Encontrou entrevistas com o juiz e
reportagens sobre suas decisões irretocáveis em processos de grande
repercussão. Henrique é hoje um desembargador aposentado.
Decidiu que precisava vê-lo.
Deu
alguns telefonemas e descobriu um endereço. Uma hora depois estava em frente a
sua porta. Uma casa grande num bairro nobre da capital, cercada por grades de
ferro altas, de estilo colonial.
Paula ficou parada no carro por uns dez
minutos. Até que a coragem a moveu. Tocou a campainha e uma senhora atendeu o
videofone. Paula se identificou como jornalista e disse que procurava pelo
desembargador. Assunto pessoal.
A
senhora destravou o portão. Paula caminhou pelo jardim até a porta da frente. Não
conseguiu pensar em nada para dizer quando o visse. Mas por alguma razão,
prosseguiu.
Subiu os degraus da entrada e
esperou. A porta se abriu e um senhor idoso apareceu a sua frente. Antes que
ela pudesse dizer a primeira palavra, ele gritou:
– Augusta!
Paula sorriu:
– Não sabia que me parecia tanto
com minha avó.
– Meu Deus! Por um momento
pensei... Desculpe-me... É que você é idêntica a ela... Por favor, entre.
– O senhor deve estranhar minha
visita.
– Não, ao contrário. Por muitos
anos esperei notícias de Augusta. É isso o que a traz aqui, não?
– Na verdade, não. Minha avó já faleceu.
– Lamento muito.
– Eu estou de mudança, fui mexer numas
coisas guardadas e lá estavam as suas cartas para ela... Eu tomei a liberdade e
as li. Parece que se amavam muito. O que aconteceu?
– Eu nunca soube ao certo. Mas sei
que fui um tolo. Estava num período conturbado. Entrei para a política ainda
jovem e descobri um mundo de possibilidades. Deslumbrei-me com o prestígio, assumi
compromissos demais e passei a escrever menos do que deveria para Augusta. Não
podia me ausentar da capital para vê-la, mas meu amor era o mesmo... Pensei que
ela me esperaria... Um dia minhas cartas começaram a voltar.
– Lembra-se de quando foi isso?
– Claro. Foi em 1941.
– O ano em que ela e meu avô se
casaram.
– Quando as cartas voltaram fiquei
preocupado. Fui a Campos e procurei por ela. A casa estava vazia. Fui então ver
a moça da farmácia do bairro. Chamava-se Clarice. Era amiga de Augusta e
ajudava a camuflar nossos encontros. Ela disse que a família de Augusta se
mudara para a capital. Sempre esperei que ela voltasse a me escrever dando seu
novo endereço, mas nunca aconteceu.
– Ela não escreveria ao senhor
estando casada com meu avô.
– Eu entendo. Então é certo que se
tivesse ido vê-la com mais frequência, teríamos nos casado...
–
A depender do que ela sentia, sim.
– Ela foi meu primeiro amor.
Casei-me cinco anos depois e embora amasse minha esposa, nunca tive por ninguém
o que tinha por Augusta. Curioso que só agora, com mais de noventa anos, eu
tenha a certeza de que ela também me amou verdadeiramente.
–
Onde quer que ela esteja, estará feliz em ouvir isso. E em saber que o
que viveram foi real.
–
Gostaria de saber mais sobre sua avó. Está com tempo para almoçar?
–
Hoje não. Preciso terminar a mudança. Tenho uma casa nova e um emprego novo
a partir de amanhã. Mas noutro dia será um prazer.
–
No sábado teremos uma festa aqui. Podemos conversar à vontade. Gostaria
de vir?
–
Com certeza.
–
Então espero você às oito. Será algo informal.
Paula agradeceu e ele a levou até
a porta.
A mudança de Paula saiu no dia
seguinte e logo após o almoço ela foi para seu novo emprego, numa prestigiada revista feminina.
– Boa-tarde. Procuro a editora
chefe. Ela está me esperando. Meu nome é Paula.
–
Ah! Sim, ela avisou – disse a recepcionista. – Pode entrar direto. Segunda sala à direita.
Paula bateu e abriu a porta do
escritório.
– Virginia?
– Entre, minha cara. Como está
indo a mudança?
– O caminhão acabou de sair e
meu irmão está ajudando. À noite vou ver o tamanho da encrenca.
– Amanhã é sexta. Você não
precisa vir. Arrume suas coisas e comece na segunda.
– Agradeço.
– Só pedi que viesse para trocarmos
ideias gerais, já que domingo vou a Paris por dez dias.
–
E a quem vou me reportar na sua ausência?
– Ao nosso editor assistente. Ele é muito
competente e simpático. Se eu tivesse quinze anos a menos ele seria a minha
escolha.
– Tudo é possível...
– Não é o caso. Eu só brinco. E
ele é bem reservado. É viúvo e ao que parece só vai se envolver com alguém
quando for pra valer. Aqui está o cartão dele. Procure-o na segunda. Ele dará todo
o suporte que precisar.
Paula
guardou o cartão e conversou com Virgínia por mais de duas horas. Saiu da
revista com uma ótima impressão. Acho que vou gostar daqui...
No sábado à noite Paula voltou à
casa do desembargador. A festa era para uns cem convidados. Garçons circulavam
pela área externa servindo bebidas e canapés e havia música tocando na piscina.
Paula cruzou os jardins até a porta da entrada e se identificou a um homem
que veio recebê-la:
– Sim, então você é a Paula! É
um prazer, eu sou o Pedro. Meu avô a espera.
Ele está numa ligação, mas deve descer logo. Fique à vontade. Vou avisá-lo de que
está aqui.
– Obrigada, Pedro. Onde fica o
toalete?
– Siga pelo corredor à esquerda.
Paula retocou a maquiagem. Esperava com
certa ansiedade pela conversa com Henrique. O que mais descobriria sobre dona Augusta?
Acima de tudo sentia que não foi
por acaso que aquela força a impediu de continuar mantendo as caixas intactas.
Tampouco foi por acaso o desejo súbito de conhecer Henrique. Algo a estava
impulsionando.
Guardou o batom e o blush, mas a força que parecia conduzi-la nos últimos dias a fez abrir a bolsa novamente. Vasculhou sua pequena carteira de couro sem saber ao certo o que procurava. Quando ia fechá-la viu o cartão do seu editor. Sequer havia lido o seu nome: Pedro de Siqueira Neves.
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