7 de mar. de 2012

Caixas de histórias

Paula fugiu da tarefa por três anos e agora iria enfrentá-la. As duas caixas empoeiradas a esperavam.
A mudança para a nova casa lhe exigiu uma filtragem nas tranqueiras acumuladas. Em dois dias estaria começando uma vida nova e só pretendia levar o essencial. Uma vida boa é uma vida simples. Os descontos eram dados a algumas peças de valor estimativo.
Mas as caixas eram um caso a parte. Sequer eram suas, mas parte do espólio da sua mãe. Paula as tirou da garagem e as levou para a sala – agora transformada num espaço de triagem de apegos.
Sentou-se com as caixas à frente. Sua mãe só falou sobre elas antes de partir, quando a chamou ao pé da cama. Uma daquelas conversas para as quais nunca estamos preparados. O coração de Paula bateu acelerado. Medo de uma revelação de última hora? De escancarar as culpas que guardara tão bem nas ultimas gavetas da mente? Medos...
Mas a conversa foi branda. Sua mãe foi direto ao ponto:
–   Tenho no sótão duas caixas que quero que guarde.
–   O que tem nelas?
–   Cartas e papéis. De sua avó.
Paula não perguntou nada. Simplesmente concordou em manter as memórias que jaziam tanto tempo enclausuradas. Passaram-se os anos e não teve coragem de tocar nelas. O que poderiam conter que lhes conferisse tanta importância?
Talvez devesse somente tirar o pó das caixas e levá-las na mudança. Um dia com calma olharia os seus conteúdos.
Pegou um pano e as limpou. Mas uma força a impediu de tornar a guardá-las. Não ia adiar mais. Sentou-se novamente.
Ao abrir a primeira caixa se deparou com fotos de lugares visitados, de parentes e amigos, de aniversários e casamentos da família. Não havia nelas nada de diferente. Eram apenas fotos normais, de tempos idos. A segunda caixa continha cartas e um diário. As cartas eram escritas em papel de seda fino, amarelado pelo tempo.
A princípio sentiu-se incomodada em esmiuçar coisas particulares de sua avó. De certa forma era uma invasão de privacidade. Deveria?
Mas a mente nos fornece boas escusas quando queremos algo movidos pela curiosidade. Afinal, que mal haveria em ler algumas cartas antigas, que não teriam mais destinatários?
               Abriu o primeiro envelope. A carta fora escrita com caneta tinteiro e com caligrafia impecável. Era uma missiva de amor. Sua avó, dona Augusta, se correspondia com Henrique de Siqueira Neves. As demais cartas também eram dele.
              Paula sabia que sua avó se casara com o primeiro e único namorado – o seu avô. Ao menos essa era a história contada através das gerações. Agora viu que existia outra parte da juventude de dona Augusta, que ficara guardada a sete chaves.
             Lendo as cartas de Henrique e o diário de Augusta pôde reconstruir a história:
            Henrique, advogado recém-formado, foi viver em Campos de Jordão por uns meses, acompanhando sua mãe que se recuperava de um problema de saúde. Lá conheceu sua avó – à época com dezessete anos –  e ambos se apaixonaram.
           Como ditavam os costumes dos anos trinta, Augusta só teria permissão para namorar aos dezoito. Então forjavam encontros furtivos que eram marcados por promessas de amor eterno. Viveram assim por seis meses. Um amor idílico e a julgar pelas cartas, verdadeiro. A jovem enamorada esperava ansiosa por seu aniversário, quando seu amado poderia pedir permissão a seu pai para “lhe fazer a corte”. 
            Mas o destino interferiu. Henrique, de família influente, foi convidado a exercer um cargo político importante na capital. Advogado jovem, teria aí um impulso ímpar no seu início de carreira. Com sua mãe em melhores condições de saúde, pôde deixá-la com uma governanta e voltar à capital.
          Henrique jurou à Augusta que iria a Campos uma vez por mês para vê-la e para visitar sua mãe. E que em meados do ano seguinte, já com sua posição política consolidada, a pediria em casamento. Nos primeiros meses ele cumpriu a promessa. Os encontros eram apaixonados e estavam certos de que o amor que sentiam era para sempre. 
        Mas depois Henrique não voltou. Escreveu cartas pedindo que o perdoasse, pois os compromissos políticos lhe impediam de viajar. Pediu a Augusta que o esperasse, pois era uma fase difícil, mas o amor a superaria.
       Pouco depois, a mãe de Henrique se recuperou e voltou à capital. Augusta ainda nutriu esperanças por algum tempo. Mas as cartas rarearam e as palavras de Henrique foram perdendo força. Decorrido pouco mais de um semestre, Augusta conheceu Armando – seu avô – e com ele se casou.
         Sua avó guardara uma única foto de Henrique em seu diário: ele na carruagem indo para a estação, para voltar à capital. Mal dava para ver seu rosto, mas era um símbolo de seu amor que partira para sempre.
      Henrique de Siqueira Neves... Paula tinha a impressão de já ter ouvido esse nome. Abriu a Internet e se pôs a pesquisar. Foi fácil: ele havia julgado um caso famoso de licitações irregulares na gestão de um político local. Encontrou entrevistas com o juiz e reportagens sobre suas decisões irretocáveis em processos de grande repercussão. Henrique é hoje um desembargador aposentado.
         Decidiu que precisava vê-lo.
        Deu alguns telefonemas e descobriu um endereço. Uma hora depois estava em frente a sua porta. Uma casa grande num bairro nobre da capital, cercada por grades de ferro altas, de estilo colonial.
        Paula ficou parada no carro por uns dez minutos. Até que a coragem a moveu. Tocou a campainha e uma senhora atendeu o videofone. Paula se identificou como jornalista e disse que procurava pelo desembargador. Assunto pessoal.
      A senhora destravou o portão. Paula caminhou pelo jardim até a porta da frente. Não conseguiu pensar em nada para dizer quando o visse. Mas por alguma razão, prosseguiu.
       Subiu os degraus da entrada e esperou. A porta se abriu e um senhor idoso apareceu a sua frente. Antes que ela pudesse dizer a primeira palavra, ele gritou:
         – Augusta!
         Paula sorriu:
         – Não sabia que me parecia tanto com minha avó.
        – Meu Deus! Por um momento pensei... Desculpe-me... É que você é idêntica a ela... Por favor, entre.
           – O senhor deve estranhar minha visita.
          – Não, ao contrário. Por muitos anos esperei notícias de Augusta. É isso o que a traz aqui, não?
          – Na verdade, não. Minha avó já faleceu.
          – Lamento muito.
         – Eu estou de mudança, fui mexer numas coisas guardadas e lá estavam as suas cartas para ela... Eu tomei a liberdade e as li. Parece que se amavam muito. O que aconteceu?
          – Eu nunca soube ao certo. Mas sei que fui um tolo. Estava num período conturbado. Entrei para a política ainda jovem e descobri um mundo de possibilidades. Deslumbrei-me com o prestígio, assumi compromissos demais e passei a escrever menos do que deveria para Augusta. Não podia me ausentar da capital para vê-la, mas meu amor era o mesmo... Pensei que ela me esperaria... Um dia minhas cartas começaram a voltar.  
             – Lembra-se de quando foi isso?
             – Claro. Foi em 1941.
             – O ano em que ela e meu avô se casaram.
             – Quando as cartas voltaram fiquei preocupado. Fui a Campos e procurei por ela. A casa estava vazia. Fui então ver a moça da farmácia do bairro. Chamava-se Clarice. Era amiga de Augusta e ajudava a camuflar nossos encontros. Ela disse que a família de Augusta se mudara para a capital. Sempre esperei que ela voltasse a me escrever dando seu novo endereço, mas nunca aconteceu.
              – Ela não escreveria ao senhor estando casada com meu avô.
              – Eu entendo. Então é certo que se tivesse ido vê-la com mais frequência, teríamos nos casado...
              –  A depender do que ela sentia, sim.
              – Ela foi meu primeiro amor. Casei-me cinco anos depois e embora amasse minha esposa, nunca tive por ninguém o que tinha por Augusta. Curioso que só agora, com mais de noventa anos, eu tenha a certeza de que ela também me amou verdadeiramente.
           –  Onde quer que ela esteja, estará feliz em ouvir isso. E em saber que o que viveram foi real.
              –  Gostaria de saber mais sobre sua avó. Está com tempo para almoçar?
              –  Hoje não. Preciso terminar a mudança. Tenho uma casa nova e um emprego novo a partir de amanhã. Mas noutro dia será um prazer.
         –  No sábado teremos uma festa aqui. Podemos conversar à vontade. Gostaria de vir?
              –  Com certeza.
              –  Então espero você às oito. Será algo informal.
              Paula agradeceu e ele a levou até a porta.
           A mudança de Paula saiu no dia seguinte e logo após o almoço ela foi para seu novo emprego, numa prestigiada revista feminina.
              – Boa-tarde. Procuro a editora chefe. Ela está me esperando. Meu nome é Paula.
              –  Ah! Sim, ela avisou – disse a recepcionista. – Pode entrar direto. Segunda sala à direita.
               Paula bateu e abriu a porta do escritório.
               – Virginia?
               – Entre, minha cara. Como está indo a mudança?
            – O caminhão acabou de sair e meu irmão está ajudando. À noite vou ver o tamanho da encrenca.
                – Amanhã é sexta. Você não precisa vir. Arrume suas coisas e comece na segunda.
                – Agradeço.
                – Só pedi que viesse para trocarmos ideias gerais, já que domingo vou a Paris por dez dias.
                –  E a quem vou me reportar na sua ausência?
                –  Ao nosso editor assistente. Ele é muito competente e simpático. Se eu tivesse quinze anos a menos ele seria a minha escolha.
                –  Tudo é possível...
                – Não é o caso. Eu só brinco. E ele é bem reservado. É viúvo e ao que parece só vai se envolver com alguém quando for pra valer. Aqui está o cartão dele. Procure-o na segunda. Ele dará todo o suporte que precisar.
                 Paula guardou o cartão e conversou com Virgínia por mais de duas horas. Saiu da revista com uma ótima impressão. Acho que vou gostar daqui...
               No sábado à noite Paula voltou à casa do desembargador. A festa era para uns cem convidados. Garçons circulavam pela área externa servindo bebidas e canapés e havia música tocando na piscina. Paula cruzou os jardins até a porta da entrada e se identificou a um homem que veio recebê-la:
            – Sim, então você é a Paula! É um prazer, eu sou o Pedro. Meu avô a espera. Ele está numa ligação, mas deve descer logo. Fique à vontade. Vou avisá-lo de que está aqui.
               – Obrigada, Pedro. Onde fica o toalete?
               – Siga pelo corredor à esquerda.
          Paula retocou a maquiagem. Esperava com certa ansiedade pela conversa com Henrique. O que mais descobriria sobre dona Augusta?
            Acima de tudo sentia que não foi por acaso que aquela força a impediu de continuar mantendo as caixas intactas. Tampouco foi por acaso o desejo súbito de conhecer Henrique. Algo a estava impulsionando.
              Guardou o batom e o blush, mas a força que parecia conduzi-la nos últimos dias a fez abrir a bolsa novamente. Vasculhou sua pequena carteira de couro sem saber ao certo o que procurava. Quando ia fechá-la viu o cartão do seu editor. Sequer havia lido o seu nome: Pedro de Siqueira Neves.
  

                

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