Mudanças. Pessoas partem por várias razões,
mas sobretudo para deixar memórias para trás. Para que elas não as atormentem
mais.
O primeiro dono deste
casarão era um comerciante próspero, conhecido como “comendador”.
Seu orgulho eram os seus quatro filhos e o seu negócio. Mandou erguer a gruta e aqui fiquei todos estes anos. Cinquenta anos! Ele a construiu a pedido da esposa, dona Belinha, que desejava um lugar especial para me alojar. Mas não pensem que me isolei do mundo. Não, nem de longe. O mundo se encarregou de vir até mim com toda a sua intensidade.
Seu orgulho eram os seus quatro filhos e o seu negócio. Mandou erguer a gruta e aqui fiquei todos estes anos. Cinquenta anos! Ele a construiu a pedido da esposa, dona Belinha, que desejava um lugar especial para me alojar. Mas não pensem que me isolei do mundo. Não, nem de longe. O mundo se encarregou de vir até mim com toda a sua intensidade.
A gruta passou a ser o retiro dos
moradores. O lugar onde cada um trazia à tona suas ânsias, culpas, esperanças e
inquietações. E contavam com o meu silêncio.
Seguros pela privacidade destas
paredes de pedra, meus visitantes se desarmavam. Certos que minha condição lhes garantia sigilo,
depositavam em mim toda a confiança. Confessavam erros, revelavam medos,
planejavam fugas. A natureza humana despojada de seus véus me desvendava as impressões
mais profundas de cada ser e foi assim que eu vivi suas vidas junto com eles.
Uma vida rica, eu pensava.
Após cinco anos a família Correia se foi.
Ou se desfez como névoa com a morte do comendador. Dona Belinha vendeu a casa e
vieram outros. Os Muniz.
Mãe e filha vertiam
lágrimas diárias. A mãe, por medo do marido – homem severo e orgulhoso. Medo de
lhe revelar que não podia gerar mais filhos. Ele se casara esperando herdeiros
para que os negócios da família prosseguissem. A filha, por temer que os pais vissem
suas formas mudando depois de um desastrado namoro às escondidas com o rapaz do
banco. O pai aparecia aos domingos. Culpava-se pelas infidelidades e mais
ainda por sua impotência ante a luxúria. Suas lágrimas eram turvas. Eu soube
antes de todos que a amante do Sr. Muniz estava grávida. Ele ia pedir o
divórcio. Foi uma lástima ter sido morto com um tiro à queima-roupa. Nunca
elucidaram o crime.
Depois deles mais três famílias habitaram o
casarão. Casais apaixonados, uma viúva sofrida, jovens iludidas e homens
atormentados.
Confesso que no início as revelações de
todos me entusiasmavam. Faziam com me sentisse importante. Nesta cidade
pequena, só o pároco sabia mais do que eu.
Meu calar era minha fortuna.
A família Sanches se instalou e trouxe uma
linda imagem para a gruta, em tamanho natural. Acostumei a tê-la como
companhia. Mais que isso: éramos cúmplices. Quando o casal partiu, senti
pela primeira vez a solidão. A imagem removida me deixou um vazio tão grande
que comecei a definhar. Vi que meu silêncio nada podia fazer pelos que me
procuravam. Suas dores, medos e dúvidas batiam em mim e se perdiam, como uma
bala que ricocheta na parede e segue sem rumo para alguma outra parte. Que
sentido tem uma vida assim?
Percebi com os anos que eu não tinha
nenhuma importância. Sou um silo que nunca será aberto pois a todos interessa
sepultar os grãos aqui guardados...
Aqueles que vieram se foram. Esqueceram das
tardes que aqui soluçaram e das noites que me segredaram anseios contando com a
minha discrição. Deixaram o casarão e a mim com o alívio de quem se livra
de um peso sobre-humano. Abandonando as memórias que lhes envenenavam a alma e
quem fez parte delas. Nunca mereci um adeus ou uma carta, sequer.
Hoje os Benton estão
partindo. Gostaria de partir também, se pudesse. Para sempre. Todas as manhãs
olho para os fios que passam sobre a gruta. A árvore da frente do jardim os
encobriu. A qualquer momento uma faísca irá parti-la e ela se debruçará sobre
estas pedras dando fim ao meu vazio.
Lembro-me como chorou quando se machucou nas
pedras do jardim e como seus olhos brilharam quando ganhou um cãozinho...
A infância... Na idade dela eu tinha sonhos
como toda a criança. Como freira realizei alguns deles. Poucos. Àquela
época vi que a vida é o que fazemos pelos outros. E eu, com minhas limitações,
pouco fiz.
Observo Rose mexendo no jardim e agora ela está
vindo para cá. Vem correndo pela grama e a mãe a chama do portão, avisando que
já vão partir.
– Oi! – ela me diz, ofegante – Peguei esta flor pra
você. – E sai voando a atender o chamado da mãe. No meio do jardim ela se volta
e pára por um instante.
– Obrigada por me ouvir – e acena um adeus.Leia também 'Camaleão'
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