11 de fev. de 2012

Efeitos do silêncio


Mudanças. Pessoas partem por várias razões, mas sobretudo para deixar memórias para trás. Para que elas não as atormentem mais.
O primeiro dono deste casarão era um comerciante próspero, conhecido como “comendador”. 

Seu orgulho eram os seus quatro filhos e o seu negócio. Mandou erguer a gruta e aqui fiquei todos estes anos. Cinquenta anos! Ele a construiu a pedido da esposa, dona Belinha, que desejava um lugar especial para me alojar. Mas não pensem que me isolei do mundo. Não, nem de longe. O mundo se encarregou de vir até mim com toda a sua intensidade.
A gruta passou a ser o retiro dos moradores. O lugar onde cada um trazia à tona suas ânsias, culpas, esperanças e inquietações. E contavam com o meu silêncio.
Seguros pela privacidade destas paredes de pedra, meus visitantes se desarmavam. Certos que minha condição lhes garantia sigilo, depositavam em mim toda a confiança. Confessavam erros, revelavam medos, planejavam fugas. A natureza humana despojada de seus véus me desvendava as impressões mais profundas de cada ser e foi assim que eu vivi suas vidas junto com eles. Uma vida rica, eu pensava.
Após cinco anos a família Correia se foi. Ou se desfez como névoa com a morte do comendador. Dona Belinha vendeu a casa e vieram outros. Os Muniz.
Mãe e filha vertiam lágrimas diárias. A mãe, por medo do marido – homem severo e orgulhoso. Medo de lhe revelar que não podia gerar mais filhos. Ele se casara esperando herdeiros para que os negócios da família prosseguissem. A filha, por temer que os pais vissem suas formas mudando depois de um desastrado namoro às escondidas com o rapaz do banco. O pai aparecia aos domingos. Culpava-se pelas infidelidades e mais ainda por sua impotência ante a luxúria. Suas lágrimas eram turvas. Eu soube antes de todos que a amante do Sr. Muniz estava grávida. Ele ia pedir o divórcio. Foi uma lástima ter sido morto com um tiro à queima-roupa. Nunca elucidaram o crime.
Depois deles mais três famílias habitaram o casarão. Casais apaixonados, uma viúva sofrida, jovens iludidas e homens atormentados.
Confesso que no início as revelações de todos me entusiasmavam. Faziam com me sentisse importante. Nesta cidade pequena, só o pároco sabia mais do que eu.  Meu calar era minha fortuna.
A família Sanches se instalou e trouxe uma linda imagem para a gruta, em tamanho natural. Acostumei a tê-la como companhia. Mais que isso: éramos cúmplices. Quando o casal partiu, senti pela primeira vez a solidão. A imagem removida me deixou um vazio tão grande que comecei a definhar. Vi que meu silêncio nada podia fazer pelos que me procuravam. Suas dores, medos e dúvidas batiam em mim e se perdiam, como uma bala que ricocheta na parede e segue sem rumo para alguma outra parte. Que sentido tem uma vida assim?
Percebi com os anos que eu não tinha nenhuma importância. Sou um silo que nunca será aberto pois a todos interessa sepultar os grãos aqui guardados...
Aqueles que vieram se foram. Esqueceram das tardes que aqui soluçaram e das noites que me segredaram anseios contando com a minha discrição. Deixaram o casarão e a mim com o alívio de quem se livra de um peso sobre-humano. Abandonando as memórias que lhes envenenavam a alma e quem fez parte delas. Nunca mereci um adeus ou uma carta, sequer.
Hoje os Benton estão partindo. Gostaria de partir também, se pudesse. Para sempre. Todas as manhãs olho para os fios que passam sobre a gruta. A árvore da frente do jardim os encobriu. A qualquer momento uma faísca irá parti-la e ela se debruçará sobre estas pedras dando fim ao meu vazio.
Nasci muda e fui irmã de caridade. Aos trinta e oito anos uma queda me deixou nesta cadeira. No convento vivíamos com simplicidade e com dificuldades. Não queria ser um peso para as outras irmãs, já tão atarefadas. Quis sair. Belinha, que eu vi crescer, fez questão que eu morasse aqui. Ia construir uma edícula, mas eu lhe pedi a gruta. Na parte da frente fez um oratório. Atrás, um cômodo com banheiro e uma pequena copa. Sou-lhe muito grata. Quando partiu, tratou de ajeitar os papéis para que eu ficasse aqui em definitivo. As novas famílias sabiam da minha existência e não se importaram.
Vejo o caminhão carregar as últimas caixas. A pequena Rose Benton brinca no jardim esperando a partida. Ela tem oito anos e é uma menina linda. Na sua pureza, ela me conta o tudo que descobre do mundo. É a única criança que viveu no casarão nestes anos todos.
Lembro-me como chorou quando se machucou nas pedras do jardim e como seus olhos brilharam quando ganhou um cãozinho...
A infância... Na idade dela eu tinha sonhos como toda a criança. Como freira realizei alguns deles. Poucos. Àquela época vi que a vida é o que fazemos pelos outros. E eu, com minhas limitações, pouco fiz.
Observo Rose mexendo no jardim e agora ela está vindo para cá. Vem correndo pela grama e a mãe a chama do portão, avisando que já vão partir.
–  Oi! –  ela me diz, ofegante – Peguei esta flor pra você. – E sai voando a atender o chamado da mãe. No meio do jardim ela se volta e pára por um instante.
              – Obrigada por me ouvir – e acena um adeus.




              Leia também 'Camaleão'

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