7 de fev. de 2012

Dores e Humores: Matrioska



                  
        A  moça  passou  pela  loja  de  antiguidades e  seus olhos foram  atraídos  pela caneta dourada exposta na vitrine: bico de pena trabalhado e um relevo na borda superior com o símbolo do infinito. O dono  da loja, de lá de dentro, sorriu  sutilmente e  acenou com a cabeça  envolta  em  um turbante. Talvez fosse hindu, árabe, ou egípcio.
Passados três dias, a moça entra em casa com a caneta. Tira os sapatos, acende a luminária da escrivaninha, pega um copo d’água, um frasco cheio de comprimidos e os ajeita no canto da mesa. Senta-se, molha a pena na tinta e numa folha em branco começa a escrever: “Não vejo mais sentido nesta vida...”

  Ela se detém por uns segundos para encontrar as palavras certas. O tempo suficiente para ver um rapaz magro e pálido pela janela, parado na calçada, com uma carta na mão. Ele está absorto, quase hipnotizado. Olha o céu e volta a olhar a carta. Ameaça abri-la e depois desiste.

      O rapaz se vai e na quadra seguinte, ao passar pela loja de antiguidades, sente-se atraído pela caneta dourada exposta na vitrine. O dono da loja, de lá de dentro, sorri sutilmente e acena com a cabeça envolta em um turbante. O rapaz decide ler a carta: “Querido, é melhor que eu vá. Você vai se virar bem, sozinho. Foram bons tempos”. Ele olha novamente a caneta e entra na loja.
   Esse era o trecho do filme a que o Murilo estava assistindo por trás de sua mesa imponente. Precisava terminar essa peça publicitária em dois dias para um cliente importante. Tinha que impressionar “de primeira”, senão ia perder a conta que lhe renderia um apartamento com varanda enorme. Deixou a planta do imóvel em cima da mesa para se lembrar de que não podia falhar.


  Murilo é o personagem criado por uma agência publicitária em ascensão: a “FURTHERMORE”. Ele é o protagonista de uma campanha que mostra o dia-a-dia de uma mega-agência fictícia. A peça publicitária é parte do novo plano de marketing da FURTHERMORE que, visando atrair grandes empresas, passa uma ideia simples: a de que há concorrentes movidos mais pelos próprios interesses do que pelos do cliente.

    Naquela tarde a FURTHERMORE estava um pandemônio. Tinham um impasse: decidir entre dois finais gravados para o tal comercial das canetas. A equipe discutiu, discutiu e não chegou a uma conclusão. Norberto, o diretor, teve uma ideia: perguntar aos clientes antigos, fiéis, qual dos dois finais eles preferiam. Aqueles para os quais a agência criara histórias de sucesso escolheriam agora o final da história para a agência. E assim foi.

     A FURTHERMORE ouviu os clientes e, afinal, definiu o desfecho do comercial:

    A moça da caneta termina de escrever a carta, toma dois comprimidos e vai dormir. No dia seguinte arruma as malas, deixa a carta para o chefe numa caixa de correio e vai para Europa viver a vida.

   O rapaz da calçada entra no antiquário, compra a caneta e fala ao celular: Amor, boas notícias! Minha madrasta se foi! Meu pai morreu há anos e eu não a aguentava, mas tinha dó. Vamos comemorar! Até comprei um presente. Algo que você queria há tempo!

   Na cena seguinte, Murilo, da concorrente fictícia, mostra o filme das canetas para o cliente. O folheto do apartamento continua em cima da mesa. A peça agrada, mas o cliente quer pensar até o fim do dia.  Ele sai da sala do Murilo e vai almoçar com um velho amigo – o dono da incorporadora do prédio com a varanda enorme. 

  Durante a refeição o construtor diz:

 –  Estou quase fechando uma venda. O comprador em potencial é publicitário. Se o cliente dele gostar de um tal filme das canetas, ele fica com a cobertura.

 Terminam o almoço e na cena seguinte o cliente entra na FURTHERMORE. A tela escurece e aparece o slogan: Não se deixe levar por aparências. Veja além disso. FURTHERMORE: a melhor publicidade para você!

 A peça foi ao ar em horário nobre e  causou um grande impacto. O comercial acabou concorrendo ao “Leão de Ouro” com o título de “Matrioska”.  Hoje à  noite será  a premiação. Às 20 horas, pela TV Panorama. Todos da FURTHERMORE vão estar lá. Será fácil identificá-los: estarão de turbante e com uma caneta na mão.
        

Um comentário:

Paul disse...

Criativo e surpreendente!

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