I
Ele chegou ao prédio com antecedência.
Seus vinte anos de experiência no ramo lhe ensinaram muita coisa. Sempre se
deve preparar o ambiente. Um ajuste aqui e ali pode fazer diferença.
– Boa-tarde! Sou da Pontes e Saffena. Vim mostrar o apartamento vinte e
três, do senhor Amâncio. Quero falar com o síndico.
– Sim. O nome do senhor?
– Pontes. Gaspar Pontes.
O porteiro destravou a entrada e interfonou:
– O senhor Pontes da imobiliária está aqui
– desligou e deu um sorrisinho amarelo. – Ele já vem. Pode
aguardar no sofá.
O elevador chegou em menos de um minuto. Um homem magro e grisalho veio
na sua direção estendendo a mão:
–
Boa-tarde. Caio Prestes, às suas ordens.
– Muito prazer. O casal que vem ver o vinte
e três quer informações sobre o condomínio. Há alguma obra em curso, ou algo que
devam saber?
– Não, o prédio está uma beleza! Não temos problemas, só as manutenções de
rotina. As contas estão em dia e levo tudo na ponta do lápis. As pastas do
prédio estão na portaria. Se quiser olhar
entregue ao Martinho, o porteiro,
quando sair.
– Obrigado. Vou pegar as pastas e esperar no apartamento.
O Pontes abriu as janelas para deixar
sair o cheiro de ar viciado. O imóvel era antigo, mas com uma boa reforma
ficaria ótimo. Quartos amplos, cozinha boa. Deixou escoar aquela água marrom
das torneiras fechadas há algum tempo e a campainha soou.
– Doutor Orlando, dona Leia,
entrem, por favor.
Mostrou os cômodos, falou da vista, da boa
vizinhança e do condomínio acessível.
– Precisa de uma reforma – disse o cliente
– mas a localização me agrada.
– Não sei – disse Leia. – Não prefere aquele mais novo perto da clínica?
– Aquele não vale o que estão pedindo. Aqui posso fazer uma oferta e
pegar um bom preço.
Leia viu que ele não estava disposto a
desembolsar muito com o imóvel:
– Amor, vou deixar você com o corretor.
Tenho horário na esteticista – disse, despedindo-se com um beijo no rosto. –
Até logo, senhor Pontes.
– Foi um prazer atendê-la.
O Pontes abriu a porta e notou o
cliente pensativo ao vê-la sair. A diferença de idade entre eles era
grande. Pelo menos vinte anos. Resolveu quebrar o silêncio:
– Doutor Orlando, vejo que já visitou
outros imóveis. Se desejar, tenho mais alguns em carteira. São prédios mais
novos e não precisam de reformas.
– Não, obrigado, senhor Pontes. Não será
necessário.
Achou que estava perdendo alguma coisa na história e decidiu arriscar:
– De qualquer forma garanto que se ficar com este, com alguns ajustes, o senhor e
dona Leia serão muito felizes aqui.
– Não seremos não – e permaneceu olhando fixamente o horizonte pela
janela da sala.
O Pontes ficou mudo com a resposta. Levou uns segundos para perguntar:
– Algum problema, doutor? Se for algo que eu possa ajudar...
– Tem tempo para uma cervejinha?
– Estou ao seu dispor. Não tenho mais clientes hoje.
II
– Edilene?
– Oi, Leia, e aí, conseguiu?
– Não sei. Acho que ele está segurando o
dinheiro.
– Ele sempre foi tão generoso...
–
É, mas agora acho que está com algum problema.. .
– Com você?
– Não, mas ele tem trabalhado até tarde. Até dormiu na clínica alguns
dias.
– Você
acha que tem mulher na jogada?
– Passei lá de surpresa outra noite, com a
desculpa de levar um lanchinho, e ele estava sozinho. Acho que é trabalho. Ele
só vive pra isso, você sabe.
– Mas encontrou tempo pra se apaixonar por
você...
– A situação era outra. Você sabe o que ele dizia. A mulher dele não
tava nem aí.
– Bom, se não é mulher, não esquenta. O
importante é que ele está cumprindo o que prometeu.
– É, mas depois desse tempo todo acho que ele vai comprar um apartamento
velho e lá do outro lado da cidade.
– Leia, seja esperta. Não encrenca, senão
ele desiste e não compra nada. Depois, com tempo você vai ajeitando tudo...
– Você tá certa. É melhor um pássaro na
mão...
– É... e você fez por merecer.
– Fiz mesmo. Aguentar as esquisitices
daquele... não foi fácil!
– Você já devia estar acostumada. São todos
assim. Ossos do ofício, amiga.
– Mas assim que eu ficar bem instalada...
– Pensando em dar um chega pra lá nele?
– O que você acha?
– Acho que isso já deu o que tinha que
dar. Daí não passa e você tem a vida pela frente. E quer saber? O Carlos sempre arrastou asa por você, está livre, bem de vida e é bem mais novo que o
Orlando.
– Ah é, livre? A bateria está acabando... Depois
passo aí pra gente conversar.
III
– Duas cervejas, por favor!
– Senhor Pontes, eu pretendo comprar o
imóvel. Vou fazer uma proposta, mas não tenho intenção de morar lá.
– O senhor está comprando como
investimento?
– Não. Estou comprando para Leia. Ela vai
morar lá.
– Entendo. Preferem viver em casas separadas. Já tive clientes assim.
– Não. Não é isso. Eu vou deixá-la, mas
ela ainda não sabe. Só vou falar no momento certo. Espero contar com a sua
discrição.
– Fique tranquilo.
O garçom trouxe as cervejas. Orlando
esperou que ele se afastasse e continuou:
– Se o senhor Amâncio aceitar a proposta,
o apartamento será dela. Mas tenho pressa. Quero corrigir alguns erros.
Praticamente deixei minha mulher por Leia. Um casamento de vinte anos. Carolina
era a melhor esposa que um homem poderia ter. Eu ganhei dinheiro, fiquei numa
situação confortável, comecei a ver defeitos nela e a me afastar... Idiotice de
meia-idade. Achei que era um garotão. Foi quando conheci a Leia, há quatro
anos.
– Já vi muitas histórias assim, doutor.
São fases da vida.
– Uma fase besta. Fiz um papel ridículo. Quis me convencer de que uma
garota jovem e bonita estava apaixonada por mim. Eu causava inveja aos meus
amigos...
– Talvez ela goste mesmo do senhor.
– Pontes, hoje eu vejo a realidade. Ela
sempre quis meu dinheiro. Viagens, jóias, roupas. Gastei muito com ela. Não me
importava. Prometi um apartamento a Leia e vou dar. Mas só porque não quero que
ela vá discutir questões de dinheiro com minha mulher, depois que...
– O senhor deixá-la?
– Não. Depois que eu me for.
– Com assim? O senhor...
– Eu tenho um tumor, Pontes. Inoperável.
– Lamento muito, doutor Orlando, eu... nem sei o que dizer...
– Nunca saí da minha casa, embora viva
com minha mulher em quartos separados. Tenho um filho adolescente e não quis
desestruturar a família. Disse a Carolina que não a amava mais, e ela concordou
em ficarmos assim até o Luiz Leopoldo atingir a maioridade. Fomos vivendo. Mas
esta semana ela descobriu o laudo do tumor. Mesmo sabendo da existência de
Leia, Carolina ficou abalada e afirmou que se eu quisesse, ela estaria ao meu
lado.
– Então o senhor contou a sua esposa
sobre dona Leia.
– Não. Nunca falei
nada. Não foi preciso. Carolina sempre soube que havia alguém. Agora quero
acertar as coisas. Vou dar o apartamento a Leia e pedi ao meu advogado para
redigir um documento que garanta minha família. Não quero que ela entre no meu
inventário para tumultuar a vida da minha mulher e do meu filho durante anos. O
que é deles estará seguro. Eles ficarão bem, e ela seguirá sua vida.
Continua na próxima postagem...
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