23 de fev. de 2012

Temperos da vida


Os aromas da infância penetram nas circunvoluções dos nossos cérebros. São registros indeléveis de momentos e experiências daquela fase em que ainda não filtramos com o intelecto o que o mundo nos apresenta. 
Cresci com os aromas da cozinha da fazenda: vendo minha mãe transformar a cesta de verduras e tomates em saborosos caldos e refogados; brincando na  chuva nas tardes em que o ferver das compotas adocicavam a vida; balançando na rede a espera dos bolos caseiros com café moído e passado na hora.
Há um prazer inexplicável em resgatar essas memórias. Os registros olfativos se fazem acompanhar das emoções correspondentes. É algo mágico, sinestésico. O perfume da baunilha avoca a alegre surpresa do manjar; o amadeirado da canela remete ao carinho da avó materna; o dourar do caramelo traz o aconchego do colo de mãe.
A infância já vai longe e com o passar dos anos empurramos esses registros de forma involuntária para as gavetas mais profundas da mente. A vida  –  às vezes ácida, às vezes azeda – nos impede de saborear os antigos prazeres mais amiúde.
Invigilantes, permitimos que o fel dos problemas espraie seu sabor em espaços maiores do nosso eu. O cotidiano, a sobrevivência, as pequenas e as grandes frustrações anestesiam nossas papilas, deixam nossas emoções em fogo brando.
Gostos não se discutem, mas a maioria de nós empurra goela abaixo sorrisos amargos, relacionamentos agridoces, amizades insossas e sonhos salgados demais. Às vezes só nos resta uma pequena parte saborosa de vivências para degustar.
O livro da vida não traz receitas prontas. Acertar o ponto é difícil e há risco de deixarmos queimar os melhores pratos e vermos tudo perder o sabor.
Quando vertemos lágrimas por picar os temperos mais ardidos, somos obrigados a lavar os olhos. Como navegantes em mar bravio, a cada tanto temos que buscar águas calmas e criar nossa nova rota de especiarias. E não só. Precisamos revirar os porões da velha nau e encontrar os temperos mais preciosos que ocultamos de nós mesmos. Esses, como os da infância, é que dão verdadeiro sabor à vida.
Hoje minha família vai se reunir na fazenda. Vou encontrá-los daqui a pouco. Será um verdadeiro banquete. Lá me esperam os beijos de amêndoas de minha mãe, o afago doce de meu pai e o perfume de camomila do olhar do meu avô. Ah! E na chegada, minha avó irá me receber no portão com um delicioso abraço de hortelã.

* Com minhas homenagens aos que ‘in memoriam’ sempre amarei.

Um comentário:

Paul disse...

Poesia pura! Excelente!

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