16 de fev. de 2012

Dores e Humores: Sem fronteiras



 Entrei no apartamento e encontrei o Conrado no sofá, de cabeça baixa, cotovelos apoiados nos joelhos.
– Vim correndo. Qual é a urgência?

Conrado não respondeu. Só olhou para mim e se endireitou.
– Está tudo bem?
– Senta aí, Alceu. Preciso de alguém em quem possa confiar. Minha família quer me interditar. Vão dizer que sou pródigo.
– Por quê? Gastou a sua fortuna na viagem à Índia?
 Não. Não gastei nada. Fiquei com uma ONG. Tipo Médicos sem Fronteiras. Lá e na África.
– Todos esses meses? Você nem é médico...
– Eu ajudava no que podia. Foi um ano que mudou minha vida. Eu nem ligo para o dinheiro...
– Agradeço a confiança, mas você precisa é de um advogado.
– Eu sei, mas preciso de você também. A questão é que os Mendes de Albuquerque Medeiros estão quebrados.
– Sua família quatrocentona? Está falando sério?
– Estou. Com a morte dos meus pais a Vitória e a Vivian foram torrando tudo. Só eu escapei ileso. Não mexi na minha parte.
– Uau! Que bomba! Eu fui ao casamento da Vitória e do Roger. Luxo, glamour, uma festa de milhões!
– Tudo aparência! Minha irmã está lisa! Casou com um aproveitador que só estava de olho na fortuna e agora quer se divorciar.
– Divorciar? Com dois meses de casado?
 Pra você ver o amor...
– Vai ver estão chorando miséria por alguns milhões a menos na conta...
– Não! Essa festa da Vitória? Saiu de graça.
– Olha que era champanhe e uísque à vontade!
– Eles deram sorte. O Roger tem uma produtora de vídeos. Um diretor de cinema europeu procurava uma locação na Bahia. O meu cunhado esperto sugeriu a nossa fazenda. O diretor gostou. A Vitória só teve o trabalho de calcular as despesas da festa. Quatro semanas de locações pagaram o bufê e a decoração com folga. Foto e filmagem, claro, por conta do Roger.
– Essa é boa! E os imóveis? Não podem vender a fazenda?
– Está penhorada, por dívidas.
– E a casa no Rio?
– Foi vendida, junto com o resto. Agora querem me interditar porque vou doar a minha parte para os pobres que ajudei na ONG.
– Bom, elas não tem nada com isso! Você pode fazer o que quiser.
– Eu sei, mas elas vão alegar insanidade mental.
– Não vai ser fácil provar. Você não é louco.
– Minha família conhece muita gente. Podem subornar alguém para atestar que estou insano. E mesmo que não consigam, não quero esse desgaste. Pensei bem e só vejo uma solução.
– Qual?
– Eu morrer.
– Ficou louco? Se você pensar numa coisa dessas, eu é que vou atestar a sua insanidade mental!
– Calma, você não entendeu!
– Então explica porque eu não gostei nada dessa conversa!
– Eu faço um testamento e desapareço. Escrevo uma carta de despedida e todos vão me tomar por morto. Vão tentar anular a transmissão dos bens, e aí eu reapareço. Até lá, já tenho os laudos médicos atestando que estou em “pleno gozo das minhas faculdades mentais”, e o planinho fajuto deles vai por água abaixo.
– E não dá para arrumar esses laudos sem ter que morrer?
– Se eu ficar por aqui, elas entram com o processo de interdição. Não vou ser o alvo dessa tática desesperada dos novos pobres da família.
– E você precisa da minha ajuda pra quê?
– Pra morrer, oras!
– Fala baixo! Os vizinhos podem ouvir.
– Não tem erro, Alceu. Eu faço o testamento e escrevo a carta de despedida. Aí eu sumo, e você planta umas pistas. Liga pra Vivian depois de uns dias, me procurando. Diz que tem deixado recados, e eu não retorno. Que há uma semana eu liguei deprimido e que estava com problemas. Elas vão ficar intrigadas e vão vir até aqui. Aí, vão ver a carta em cima da mesa.
– Cara, você anda vendo muito filme policial.
– Não tem complicação! Tudo não vai passar de um mal entendido. Então, posso contar com você?
– Pode, mas quero um número seguro para a gente se falar.
– Sem problema. 
– Quanto tempo vai ficar sumido?
– Uns seis meses. Se precisar, volto antes.
– E quando vai ser isso?
– Bem, vai depender de um outro pequeno favor seu.
– Eu sabia! Eu sabia que tinha truta nessa história!
– Não tem truta nenhuma. Lembra o cara que tinha uma cantina lá na faculdade?
– Sei, o Feijó. O que tem ele?
– Ele tinha sido piloto, não é?
 Você fala como se ele tivesse trabalhado na Boeing. Ele jogava inseticida nas roças da família. Aposentou-se por ter aspirado aquela poeira tóxica.
– Mas pelo menos um Cessna ele pilota. Preciso que ele me atravesse na fronteira. Não quero pegar um voo regular. A Vivian pode checar as companhias aéreas. Você tinha o telefone dele...
– Eu nem sei se ele ainda está vivo!
– Pode ligar pra ele?
Eu não podia dizer não. Sei de gente que forjou a própria morte para receber um seguro, mas, para doar aos pobres, eu nunca tinha visto!
A estratégia funcionou. O Feijó, como uma fênix, ressurgiu das cinzas e orgulhoso por pilotar novamente, cruzou a fronteira com o Conrado. Três dias depois do meu telefonema, a Vivian e a Vitória foram ao apartamento do irmão e encontraram a carta em cima da mesa: 
 Irmãs,
Desculpem, mas não arranjei coragem para explicar tudo a vocês. Quero que entendam que minha vida aqui não existe. Estou indo para um lugar melhor. Não se aflijam. Vou, finalmente ficar em paz!” 
Seu irmão,
Conrado
Depois de trinta dias desaparecido e das buscas em vão, ele foi dado como morto. Os Mendes de Albuquerque Medeiros providenciaram um funeral com pompa e circunstância. Mais de cem coroas de flores. O Roger filmou tudo. Eu pedi uma cópia, e o Conrado assistiu depois. Disse que foi uma experiência única!
Durante dois meses temos mantido contato. O finado está ajudando comunidades carentes na América Central. Hoje liguei e pedi que viesse. Na próxima sexta os advogados vão definir como enfrentar o seu testamento.
---- * ----
Chegara o dia “D”. A Vivian me pediu que a acompanhasse. Aceitei o convite e fui. Não podia perder aquilo por nada!
Chegamos ao escritório Lacerda, Marulk e Reichtnsbault Advogados Associados. À mesa o doutor Lacerda, a Vivian, a Vitória e o Roger, que resolveu não se divorciar ao saber da fortuna em questão. Eu fique de pé. O advogado ia começar a falar, mas pedi licença para usar o banheiro. Precisava ganhar tempo. O Conrado ia chegar a qualquer momento e vinha com uma notícia bomba. Enquanto enxugava as mãos no lavabo da entrada, escutei uma voz conhecida:
– Boa-tarde!
– Boa-tarde – disse a secretária – Em que posso ajudá-lo?
– Vim para uma reunião.
– Do que se trata?
– Do testamento do senhor Conrado Mendes de Albuquerque Medeiros.
– Sim, já estão todos lá dentro. Quem devo anunciar?
– O falecido.
– Desculpe!
– Diga que o falecido deseja participar da reunião.
Nessa hora, eu, discretamente, entreabri a porta do lavabo. Não resisti ver a cara de espanto da secretária. Ela se levantou rapidinho, abriu a sala de reunião e disse:
– Doutor Lacerda, há um senhor aqui que... é o... ele disse que veio para a leitura do testamento.
– Estão aguardando mais alguém? – perguntou o Lacerda às irmãs.
– Não – disseram.
O falecido não aguentou esperar. Passou por trás da secretária e entrou na sala, de supetão:
– Desculpem o meu atraso.
– Conrado! – gritou Vivian, enquanto Vitória desabou no encosto da cadeira com mão ao peito e pálida como se fosse ela o cadáver! O Roger, pela expressão apoplética, deve ter se arrependido de não estar com a sua câmera na mão. Uma cena assim, nunca mais!
O doutor Lacerda tentou manter a calma, como convêm a um advogado da sua estirpe. Falou com uma esforçada fleuma:
– Mas, o senhor não está morto?
Que pergunta!
– Não que eu tenha percebido – respondeu Conrado, sentando-se à mesa.
Eu, que espiei tudo pela porta, entrei de mansinho e fiquei em um canto, me deliciando!
– E a carta? – perguntou Vivian. – Você disse que sua vida não existia... Que ia  para um lugar melhor... ficar em paz...
– E fui. Estive ajudando os carentes na América Central. Mas, vocês não parecem felizes em me ver!
– Você não deu noticias este tempo todo... – disse o cunhado.
– Fiquei um ano na Índia e na África e vocês também não me ligaram. Eu estava trabalhando. Só isso. Voltei porque recebi uma notícia e achei que vocês deviam saber.
– Você tem mais alguma coisa pra nos surpreender? – perguntou Vivian, com um tom indignado.
– Na verdade, tenho. É sobre o general.
– Quem? – perguntou Roger.
– Nosso bisavô – disse Vitória.
– Um filantropo. Vive na Suíça – completou Vivian. – E qual é a notícia?
– Infelizmente, ele teve um derrame e não resistiu.
– E ninguém nos avisou? – reclamou Vitória.
– Vocês nunca ligaram. Eles não tinham telefones ou e-mails para avisar. Mandaram uma carta. Deve estar chegando.
– Como você soube? – perguntou Roger.
– Nós nos falamos de tempos em tempos. A governanta me contou.
– Bem, e agora, o que acontece? – perguntou Vivian, mascando nervosamente um chiclete.
O doutor Lacerda arriscou falar, mas o Conrado foi mais rápido:
 – Como nossos pais e avós já se foram, os bens do Comendador passam para nós, seus únicos bisnetos.
Vitória elevou as sobrancelhas e virou o rosto para ouvir melhor. Roger a abraçou.
– Deus é pai! – disse Vivian.
– Agora temos que conhecer a situação do outro de cujus – disse o doutor Lacerda.
– De quem? – perguntou Roger, mas seu celular tocou e ele saiu da sala.
– Então... –  começou Vitória, quando o ex-finado atropelou:
– Só há duas condições.
– Quais? – perguntou o jogral.
– O testamento diz que não podemos nos desfazer de metade dos bens nos próximos cinco anos.
–  E o que mais? – perguntou Vitória?
–  Do que nos couber, uma percentagem dos lucros anuais deve ser dada aos pobres, caso contrário, no ano seguinte os bens serão bloqueados.
– Que percentagem? – perguntou Vivian.
– Noventa por cento.
Vivian engoliu o chiclete, e Vitória desmaiou.

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