7 de fev. de 2012

Dores e humores: Preferências



Dulce se deteve aos pés da imponente escadaria do fórum e olhou para cima, para o monumento da justiça que suas pernas fracas deveriam escalar. Sentia-se diminuta ante o majestoso burgo do Poder Judiciário.
A beleza neoclássica do prédio era indiscutível. Mas, ela procurava decifrar os apliques da fachada e as incrustações das colunas do pórtico com um olhar mais crítico. Fariam eles jus à função de julgar com acerto os reclamos dos injustiçados? E a viva estrutura interior do fórum, esculpida pela mente dos magistrados, poderia se equiparar à harmonia estética que seu exterior destacava?

Ela estava ali como tantas outras almas, ansiosa por obter a decisão para o seu caso. Chegara afinal o dia da audiência.

Impotente perante as circunstâncias, de nada lhe serviria uma bússola que lhe indicasse o norte, ou um novo caminho. Fosse qual fosse o final da história, teria que se adaptar aos novos rumos de sua vida. O norte agora se resumia ao juiz. 

Via-se aflita, mas não lamentava. Ao menos não era um daqueles casos dramáticos de lares desfeitos por violência, de adoções frustradas, de crianças sem pais e sem alimentos, de pessoas lesadas em seus parcos pecúlios pelo mau caráter de tantos, ou pela usura de grandes corporações financeiras. Há muitos aqui em condições bem piores...

Mas ela depositara suas esperanças nessa audiência. O que lhe restaria se fosse vencida? Havia percorrido a maior parte de seu tempo neste mundo. Dizia que se a terceira idade coleciona experiências e, às vezes, alguma sabedoria, se faz acompanhar menos por expectativas e mais por clichês.

Nas estações que ainda lhe coubesse viver, teria mais encontros com médicos e farmacêuticos, do que com amigos e parentes. Gastaria mais em remédios do que em viagens. Suas refeições seriam as que não lhe fizessem mal e não as que realmente lhe apeteciam.

Os prazeres aos poucos vão desaparecendo. E o que resta tem que ser bem equalizado: Ler? É ótimo, mas com a vista cansada e vários graus de distorção – mesmo com óculos – é um programa de poucos minutos por vez. Caminhar? Excelente para a saúde, mas as artrites e artroses requerem esforços moderados. Artesanatos? São uma terapia, mas demandam muitas vezes a sintonia fina de dedos que já não respondem como antes.

Dulce sabia de tudo isso. E estava preparada, ou melhor, conformada. Destarte, ao tentar recolher os grãos que ainda caíam da sua peneira dos anos, ela chegara à conclusão que o que precisava mesmo era da pracinha.

Ah! A pracinha...

Lembrava nitidamente que há quatro meses recebera o telefonema do advogado:

– Dona Dulce, já dei entrada na sua ação, mas precisamos conversar. Tenho que lhe passar algumas instruções.

Ansiosa, foi ao escritório do Dr. Menezes na mesma tarde.

– Sente-se, dona Dulce. Creio que há boas chances de o juiz levar em consideração o seu pedido. O testamento está sendo contestado com base em um documento assinado pela própria falecida. Mas quero que fique bem atenta na audiência. Haja o que houver, quando o juiz lhe fizer perguntas, não mencione a pracinha!

– Está certo, doutor.

Os dias passavam e ela percebeu que a ansiedade pela espera a estressava.

Estresse mata – dizia seu médico. – Fuja dele como o diabo da cruz!

Precisava fazer alguma coisa. A pracinha não saía da sua cabeça e não podia ficar pensando nessa história o tempo todo. Acabaria tendo um derrame ou morrendo por causa da pressão alta. De nada adiantaria então, a batalha na justiça. 
Se ao menos tivesse alguém com quem desabafar... Mas a vida não lhe dera filhos e a morte lhe tomara o marido e os pais. Filha única, restaram-lhe só algumas raras amigas. Tão raras, que ela as chamava de ovos Fabergé!  Difíceis de encontrar –  sempre perambulando pela casa dos filhos e netos – e extremamente frágeis – com a saúde delicada dos setenta e dos oitenta. 
Reuniam-se, às vezes, na Casa do Caminho, instituição de caridade que Dulce ajudava fazendo tricôs para os bazares. Ela sabia que não podia contar às amigas sobre a pracinha. Todas elas conheciam a prima Salina. A cobra cascavel que era sua adversária da ação na justiça. E se ovos Fabergé têm muitas qualidades, não se pode incluir entre elas a discrição!
 Dulce teria mesmo que passar os meses seguintes engolindo em seco o seu segredo e controlando a pressão. Tinha um nó no peito. De dia ainda ia levando, mas à noite... A escuridão robustece os males e os temores. Do pôr do sol até o deitar eram suas piores horas.

 Mas ela não ia se entregar facilmente. Com poucas opções para cruzar as areias escaldantes do verão vindouro, viu que precisava se ocupar. Não ficaria só passeando ao sol  e esperando a audiência. Quatro meses de angústia e dolce far niente?  Não era sua praia. Decidiu arrumar um emprego.
  Seria ótimo. Com sua minguada pensão do INSS, o reforço de uma rendinha extra lhe cairia bem e as angústias da noite se dissipariam.

  Pôs mãos à obra: jornal de domingo em punho, seção de classificados. Fez uma oração. Seus olhos percorreram cada coluna impressa e bem ao final da terceira página surgiu o que procurava: “Precisa-se de moça ou senhora de fino trato para atendimento ao público. Das 18 h às 24 h. Fixo + comissão”. Dulce ligou e marcou entrevista.

 E lá estava ela, dois dias depois, andando orgulhosa pela calçada a caminho do trabalho, observando o pôr-do-sol. A idade também tem suas vantagens. Passara na frente das moças que se apresentaram para a função. Disse ao empregador que podia contratá-la sem receio. Não ia engravidar e deixá-lo na mão, não ia se engraçar com os clientes e sua aparência impunha respeito no caso de alguma situação de saia-justa.
 Arrumara o emprego e de quebra vivia uma aventura. Talvez uma das  últimas, a julgar  como as capacidades físicas e mentais podem declinar abruptamente nessa fase da vida. É certo que não tinha intenção de revelar a ninguém sua nova ocupação, mas sentia-se ousada em ter aceitado a função: recepcionista de motel.
 Para ela era conveniente. Sentava-se em um guichê de vidro translúcido, filmado. Podia ficar assistindo a sua tevezinha de dez polegadas e fazendo seus tricôs. Não precisava se expor e o guichê era blindado. Por razões de segurança, explicou o gerente.

Quando chegava um carro, via pelas câmeras. Abria o portão pelo controle remoto e usava um microfone de lá de dentro:

– Boa-noite!

– Boa-noite. Uma luxo com hidro, pra pernoite, por favor.

– Pois não. A cinquenta e cinco. Aqui está o cartão magnético – e o colocava em uma bandeja em um pequeno vão na parede.


 – Boa-noite! Tem alguma luxo disponível?
 – Período ou pernoite, senhor?

 – Período. Duas horas.

 – Temos com hidro e com cascata. A de teto solar tem fila de espera.

 – Teto solar? Mas pra que essa gente fica esperando? É de noite!

 – Querem ver as estrelas, senhor.

 – Com cascata está ótimo.

 – Pois não. A setenta e oito. Aqui está o cartão.

O emprego não só a abstraía da angústia pela audiência. No passar dos dias ela se divertia muito. Podia ver a cidade pelo avesso, dali. A vereadora que entrava com seu garotão, o empresário do shopping com seu outro garotão, a socialite bem casada com seu novo galã, as meninas da faculdade com garotos e vovôs e os clientes habitués da casa:
  – Boa-noite! A cento e doze, por favor.
  Cada dia uma surpresa. Como vivemos de aparências. É só sexo. Coisa da natureza humana – tentava se convencer. Mas havia situações que a incomodavam. A jovem loira tinha um parceiro para cada dia da semana. Dulce a conhecia. Não era uma profissional. Trabalhava na perfumaria e estudava à noite – nos dias em que não estava por lá. Dizem os jovens que hoje não se namora. Eles estão “ficando” –  seja lá o que isso for. Mas, isso não  é  da natureza humana. Ficar? Não pode ser. Animal acasala. Ser humano se relaciona. Essa deveria ser a diferença.
  E lá vinha um carro preto conhecido. Mesmo carro, outra parceira.
  – Boa-noite. A cento e doze está livre?

  – Está sim, senhor. Pernoite?

  –  Só duas horas.

As semanas foram passando, Dulce se distraindo e encorpando a renda para não pensar na audiência. Com tanta gente animada na cidade, o motel ia bem. Mas depois de  três meses a angústia voltou com toda a força. Nem as indiscrições da exemplar sociedade local faziam-na parar de pensar. A audiência estava chegando.
– Boa-noite!
–  A cento e doze, por favor! Pra pernoite.

–  Pois não. Aqui está o cartão, senhor.

Chegara também o aniversário da morte da tia Lenilda. A tia que fez o testamento e que deixou para ela e para malévola prima Salina, dois apartamentos idênticos. Mesmo prédio e mesmo andar.
Dulce foi até o cemitério e levou flores –  amarílis são as que tia Nilda gostava.

Pôs-se em oração:

–  Tia querida, que esteja na luz! Sou grata por sua generosidade. E se puder, daí, interceda por mim na audiência. A senhora sabe que meu pedido é justo. Se eu ficar com o outro apartamento, poderei ver a pracinha.
Aquela pequena área verde é o último elo com o bairro onde passei toda minha vida. A cidade mudou muito. Hoje as casas viraram lojas ou  torres de apartamentos. Parece que o que eu vivi está se apagando... A velhice me alcançou e a pracinha me dá um pouco de alegria pra temperar minha solidão. Ver o sorriso das crianças no balanço velho, as flores que resistem aos skates e tornam a nascer, a euforia da turma do algodão doce nas bicicletas de rodinhas... rodinhas... mesmo numa cadeira de rodas, poderei ver a pracinha dali. A Salina não quer largar a filha. Vive naquele casarão luxuoso e já disse que não mora lá no prédio por nada. Vai alugar o dela. Então pra ela não faz diferença. E eu quero poder contemplar esse cantinho que me dá certeza de que o que eu vivi foi real... A pracinha me conhece. Desconfio até que vai até esperar meu olhar lá do alto pra se sentir apreciada... Agora preciso ir. Fique em paz, tia Lenilda! E obrigada!

 Dulce começou a subir a escadaria do fórum com o coração batendo descompassado.
 –  Boa-tarde, Dr. Menezes.

 – Boa-tarde. Podemos entrar. Dona Salina já  está  lá  dentro. Lembre-se, não comente nada sobre a pracinha. Se ela pensar que essa “vista” pode valorizar o apartamento, ela nunca concordará em trocar.

 –  Mas a pracinha é tão pequena... nem pode ser chamada de vista. Meu carinho por ela é que é grande.

–  Eu entendo, dona Dulce, mas dona Salina pode não ver a questão do mesmo jeito.

O juiz tomou a palavra:

–  Dona Dulce, pelo que vejo sua tia deixou dois imóveis iguais para senhora e dona Salina. Mesmo prédio, mesmo andar, mesmo valor de mercado. Por que a senhora quer o imóvel destinado a ela?

–  O senhor pode ver pelo documento que o Dr. Menezes pôs no processo, que a tia Lenilda tinha intenção de me dar o outro imóvel. Alguém errou na hora de escrever o testamento e os números saíram trocados. Eu fiquei com o vinte e um e a Salina com o vinte e dois.

–  Dona Salina – disse o juiz – os dois imóveis são iguais na planta, na localização e no valor. Por que a senhora se opõe a trocar o imóvel, ante o pedido da dona Dulce?

–  Doutor, eu sou pelo que é certo. O testamento diz que eu fico com o vinte e dois. Quero respeitar a última vontade da minha falecida tia.
Falsa. Nunca visitou tia Lenilda enquanto era viva, nem nos Natais. Mandava um cartão pelo correio dizendo que ia passar as festas fora, só pra não ter que ir vê-la.
– Bem, temos um impasse e precisamos resolvê-lo. Se não chegarem a um acordo terei que decidir – disse o juiz.

Nesse instante, a escrivã entra:

–  Excelência, desculpe, sua esposa ao telefone. Diz que é urgente.

–  Estou em audiência, Agnes.

–  Desculpe, mas é uma urgência –  E entregou o telefone, ante o aceno de cabeça do magistrado.

–  O que houve? – O juiz muda de expressão. – Está bem, vá para o velório que eu pego as crianças.

Dulce e Salina se entreolham. Uma hostilidade contida, mas fugaz. O fim do telefonema do juiz desmonta os antagonismos nas faces, rapidamente.

– Obrigado, Agnes. Desculpem a interrupção. Um falecimento na família. Mas vamos prosseguir. Dona Dulce, não aceita mesmo ficar com o  vinte e um?

 – Não, doutor, eu quero o vinte e dois. O que a tia Lenilda havia me prometido. Para mim o vinte e dois tem um valor estimativo.

O juiz estava ficando impaciente:

– Mas, dona Dulce, seja razoável! A senhora está movendo a máquina do judiciário, só por causa de uma preferência! Uma coisa tola! Vamos esquecer essa preferência e mandar passar as escrituras?

Dulce olhou bem nos olhos do juiz:

– Não, doutor. Não é coisa tola, não. Preferência é preferência! E deve ser respeitada. Eu prefiro o vinte e dois. Tem gente que prefere a cento e doze!


Leia também 'Os efeitos do silêncio'

Um comentário:

Paul disse...

Sensível, leve e bem escrito. Bom texto!

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