Dulce se deteve aos pés da imponente escadaria do fórum e olhou
para cima, para o monumento da justiça que suas pernas fracas deveriam
escalar. Sentia-se diminuta ante o majestoso burgo do Poder Judiciário.
A beleza neoclássica do prédio era
indiscutível. Mas, ela procurava decifrar os apliques da fachada e as incrustações
das colunas do pórtico com um olhar mais crítico. Fariam eles jus à função de
julgar com acerto os reclamos dos injustiçados? E a viva estrutura interior do
fórum, esculpida pela mente dos magistrados, poderia se equiparar à harmonia
estética que seu exterior destacava?
Ela estava ali como tantas outras almas, ansiosa por obter a
decisão para o seu caso. Chegara afinal o dia da audiência.
Impotente perante as circunstâncias, de nada lhe serviria uma
bússola que lhe indicasse o norte, ou um novo caminho. Fosse qual fosse o final
da história, teria que se adaptar aos novos rumos de sua vida. O norte agora se
resumia ao juiz.
Via-se aflita, mas não lamentava. Ao menos não era um daqueles
casos dramáticos de lares desfeitos por violência, de adoções frustradas, de
crianças sem pais e sem alimentos, de pessoas lesadas em seus parcos pecúlios
pelo mau caráter de tantos, ou pela usura de grandes corporações financeiras.
Há muitos aqui em condições bem piores...
Mas ela depositara suas esperanças nessa audiência. O que lhe
restaria se fosse vencida? Havia percorrido a maior parte de seu tempo neste
mundo. Dizia que se a terceira idade coleciona experiências e, às vezes, alguma
sabedoria, se faz acompanhar menos por expectativas e mais por clichês.
Nas estações que ainda lhe coubesse viver, teria mais encontros
com médicos e farmacêuticos, do que com amigos e parentes. Gastaria mais em
remédios do que em viagens. Suas refeições seriam as que não lhe fizessem mal e
não as que realmente lhe apeteciam.
Os prazeres aos poucos vão desaparecendo. E o que resta tem que
ser bem equalizado: Ler? É ótimo, mas com a vista cansada e vários graus
de distorção – mesmo com óculos – é um programa de poucos minutos por vez.
Caminhar? Excelente para a saúde, mas as artrites e artroses requerem esforços
moderados. Artesanatos? São uma terapia, mas demandam muitas vezes a sintonia
fina de dedos que já não respondem como antes.
Dulce sabia de tudo isso. E estava
preparada, ou melhor, conformada. Destarte, ao tentar recolher os grãos que
ainda caíam da sua peneira dos anos, ela chegara à conclusão que o que
precisava mesmo era da pracinha.
Ah! A pracinha...
Lembrava nitidamente que há quatro meses recebera o
telefonema do advogado:
– Dona Dulce, já dei entrada na sua ação, mas precisamos
conversar. Tenho que lhe passar algumas instruções.
Ansiosa, foi ao escritório do Dr. Menezes na mesma tarde.
– Sente-se, dona Dulce. Creio que há boas chances de o juiz
levar em consideração o seu pedido. O testamento está sendo contestado com
base em um documento assinado pela própria falecida. Mas quero que fique bem
atenta na audiência. Haja o que houver, quando o juiz lhe fizer perguntas, não
mencione a pracinha!
– Está certo, doutor.
Os dias passavam e ela percebeu que a ansiedade pela espera a estressava.
Estresse mata – dizia seu médico. – Fuja dele como o diabo da cruz!
Precisava fazer alguma coisa. A pracinha não saía da sua cabeça e
não podia ficar pensando nessa história o tempo todo. Acabaria tendo um derrame
ou morrendo por causa da pressão alta. De nada adiantaria então, a batalha na
justiça.
Se ao menos tivesse alguém com quem desabafar... Mas a vida não
lhe dera filhos e a morte lhe tomara o marido e os pais. Filha única,
restaram-lhe só algumas raras amigas. Tão raras, que ela as chamava de
ovos Fabergé! Difíceis de encontrar – sempre perambulando pela casa
dos filhos e netos – e extremamente frágeis – com a saúde delicada dos
setenta e dos oitenta.
Reuniam-se, às vezes, na Casa do Caminho, instituição de caridade
que Dulce ajudava fazendo tricôs para os bazares. Ela sabia que não podia
contar às amigas sobre a pracinha. Todas elas conheciam a prima Salina. A cobra
cascavel que era sua adversária da ação na justiça. E se ovos Fabergé têm
muitas qualidades, não se pode incluir entre elas a discrição!
Dulce teria mesmo que passar os meses seguintes engolindo em seco
o seu segredo e controlando a pressão. Tinha um nó no peito.
De dia ainda ia levando, mas à noite... A escuridão robustece os males e
os temores. Do pôr do sol até o deitar eram suas piores horas.
Mas ela não ia se entregar facilmente. Com poucas
opções para cruzar as areias escaldantes do verão vindouro, viu que
precisava se ocupar. Não ficaria só passeando ao sol e esperando a
audiência. Quatro meses de angústia e dolce far niente? Não
era sua praia. Decidiu arrumar um emprego.
Seria ótimo. Com sua minguada pensão do INSS, o
reforço de uma rendinha extra lhe cairia bem e as angústias da noite se
dissipariam.
Pôs mãos à obra: jornal de domingo em punho, seção de
classificados. Fez uma oração. Seus olhos percorreram cada coluna impressa e bem ao final da terceira página surgiu o que
procurava: “Precisa-se de moça ou senhora de fino trato para atendimento ao
público. Das 18 h às 24 h. Fixo + comissão”. Dulce
ligou e marcou entrevista.
E lá estava ela, dois dias depois, andando orgulhosa pela
calçada a caminho do trabalho, observando o pôr-do-sol. A idade também tem
suas vantagens. Passara na frente das moças que se apresentaram para a função.
Disse ao empregador que podia contratá-la sem receio. Não ia engravidar e
deixá-lo na mão, não ia se engraçar com os clientes e sua aparência impunha
respeito no caso de alguma situação de saia-justa.
Arrumara o emprego e de quebra vivia uma aventura.
Talvez uma das últimas, a julgar como as capacidades físicas e
mentais podem declinar abruptamente nessa fase da vida. É certo que
não tinha intenção de revelar a ninguém sua nova ocupação, mas sentia-se ousada
em ter aceitado a função: recepcionista de motel.
Para ela era conveniente. Sentava-se em um guichê de
vidro translúcido, filmado. Podia ficar assistindo a sua tevezinha de dez
polegadas e fazendo seus tricôs. Não precisava se expor e o guichê era
blindado. Por razões de segurança, explicou o gerente.
Quando chegava um carro, via pelas câmeras. Abria o portão pelo
controle remoto e usava um microfone de lá de dentro:
– Boa-noite!
– Boa-noite. Uma luxo com hidro, pra pernoite, por favor.
– Pois não. A cinquenta e cinco. Aqui está o cartão magnético
– e o colocava em uma bandeja em um pequeno vão na parede.
– Boa-noite! Tem alguma luxo disponível?
– Período ou pernoite, senhor?
– Período. Duas horas.
– Temos com hidro e
com cascata. A de teto solar tem fila de espera.
– Teto solar? Mas pra que essa gente fica esperando?
É de noite!
– Querem ver as estrelas, senhor.
– Com cascata está ótimo.
– Pois não. A setenta e oito. Aqui está o cartão.
O emprego não só a abstraía da angústia pela audiência. No
passar dos dias ela se divertia muito. Podia ver a cidade pelo avesso, dali. A
vereadora que entrava com seu garotão, o empresário do shopping com
seu outro garotão, a socialite bem casada com seu novo galã,
as meninas da faculdade com garotos e vovôs e os clientes habitués da
casa:
– Boa-noite! A cento e doze, por favor.
Cada dia uma surpresa. Como vivemos de aparências.
É só sexo. Coisa da natureza humana – tentava se
convencer. Mas havia situações que a incomodavam. A jovem loira tinha um
parceiro para cada dia da semana. Dulce a conhecia. Não era uma profissional.
Trabalhava na perfumaria e estudava à noite – nos dias em que não
estava por lá. Dizem os jovens que hoje não se namora. Eles
estão “ficando” – seja lá o que isso for. Mas, isso
não é da natureza humana. Ficar? Não pode ser. Animal acasala.
Ser humano se relaciona. Essa deveria ser a diferença.
E lá vinha um carro preto conhecido. Mesmo carro,
outra parceira.
– Boa-noite. A cento e doze está livre?
– Está sim, senhor. Pernoite?
– Só duas horas.
As semanas foram passando, Dulce se distraindo e encorpando a
renda para não pensar na audiência. Com tanta gente animada na cidade, o motel
ia bem. Mas depois de três meses a angústia voltou com toda a força. Nem
as indiscrições da exemplar sociedade local faziam-na parar de pensar. A audiência
estava chegando.
– Boa-noite!
– A cento e doze, por favor! Pra pernoite.
– Pois não. Aqui está o cartão, senhor.
Chegara também o aniversário da morte da tia Lenilda. A tia que
fez o testamento e que deixou para ela e para malévola prima Salina, dois
apartamentos idênticos. Mesmo prédio e mesmo andar.
Dulce foi até o cemitério e levou flores – amarílis são
as que tia Nilda gostava.
Pôs-se em oração:
– Tia querida, que esteja na luz! Sou grata por sua
generosidade. E se puder, daí, interceda por mim na audiência. A senhora sabe
que meu pedido é justo. Se eu ficar com o outro apartamento, poderei ver a
pracinha.
Aquela pequena área verde é o último elo com o bairro onde
passei toda minha vida. A cidade mudou muito. Hoje as casas viraram lojas ou
torres de apartamentos. Parece que o que eu vivi está se apagando...
A velhice me alcançou e a pracinha me dá um pouco de alegria pra temperar
minha solidão. Ver o sorriso das crianças no balanço velho, as flores que
resistem aos skates e tornam a nascer, a euforia da turma do
algodão doce nas bicicletas de rodinhas... rodinhas... mesmo numa cadeira de
rodas, poderei ver a pracinha dali. A Salina não quer largar a filha. Vive
naquele casarão luxuoso e já disse que não mora lá no prédio por nada. Vai
alugar o dela. Então pra ela não faz diferença. E eu quero poder contemplar
esse cantinho que me dá certeza de que o que eu vivi foi real... A pracinha me
conhece. Desconfio até que vai até esperar meu olhar lá do alto pra se sentir
apreciada... Agora preciso ir. Fique em paz, tia Lenilda! E obrigada!
Dulce começou a subir a escadaria do fórum com o coração
batendo descompassado.
– Boa-tarde, Dr. Menezes.
– Boa-tarde. Podemos entrar. Dona Salina já está
lá dentro. Lembre-se, não comente nada sobre a pracinha. Se ela pensar
que essa “vista” pode valorizar o apartamento, ela nunca concordará em
trocar.
– Mas a pracinha é tão pequena... nem pode ser
chamada de vista. Meu carinho por ela é que é grande.
– Eu entendo, dona Dulce, mas dona Salina pode não ver a
questão do mesmo jeito.
O juiz tomou a palavra:
– Dona Dulce, pelo que vejo sua tia deixou dois imóveis
iguais para senhora e dona Salina. Mesmo prédio, mesmo andar, mesmo valor de
mercado. Por que a senhora quer o imóvel destinado a ela?
– O senhor pode ver pelo documento que o Dr. Menezes pôs no
processo, que a tia Lenilda tinha intenção de me dar o outro imóvel. Alguém
errou na hora de escrever o testamento e os números saíram trocados. Eu fiquei
com o vinte e um e a Salina com o vinte e dois.
– Dona Salina – disse o juiz – os dois imóveis são
iguais na planta, na localização e no valor. Por que a senhora se opõe a trocar
o imóvel, ante o pedido da dona Dulce?
– Doutor, eu sou pelo que é certo. O testamento diz que
eu fico com o vinte e dois. Quero respeitar a última vontade da minha falecida
tia.
Falsa. Nunca visitou tia Lenilda enquanto era viva, nem nos
Natais. Mandava um cartão pelo correio dizendo que ia passar as festas fora,
só pra não ter que ir vê-la.
– Bem, temos um impasse e precisamos resolvê-lo. Se não chegarem a
um acordo terei que decidir – disse o juiz.
Nesse instante, a escrivã entra:
– Excelência, desculpe, sua esposa ao telefone. Diz que
é urgente.
– Estou em audiência, Agnes.
– Desculpe, mas é uma urgência – E entregou o
telefone, ante o aceno de cabeça do magistrado.
– O que houve? – O juiz muda de expressão.
– Está bem, vá para o velório que eu pego as crianças.
Dulce e Salina se entreolham. Uma hostilidade contida, mas fugaz.
O fim do telefonema do juiz desmonta os antagonismos nas faces, rapidamente.
– Obrigado, Agnes. Desculpem a interrupção. Um falecimento na
família. Mas vamos prosseguir. Dona Dulce, não aceita mesmo ficar com o
vinte e um?
– Não, doutor, eu quero o vinte e dois. O que a tia Lenilda
havia me prometido. Para mim o vinte e dois tem um valor estimativo.
O juiz estava ficando impaciente:
– Mas, dona Dulce, seja razoável! A senhora está movendo a
máquina do judiciário, só por causa de uma preferência! Uma coisa tola!
Vamos esquecer essa preferência e mandar passar as escrituras?
Dulce olhou bem nos olhos do juiz:
– Não, doutor. Não é coisa tola, não. Preferência
é preferência! E deve ser respeitada. Eu prefiro o vinte e dois. Tem gente
que prefere a cento e doze!
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Um comentário:
Sensível, leve e bem escrito. Bom texto!
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