19 de mai. de 2012

O portão

O badalar do sino da entrada fez Valdo interromper suas orações. Caminhou até a frente do mosteiro e abriu a pesada porta de madeira ao entregador.
  Bom-dia, Telmo.
  Bom-dia, frade.
Telmo, como de hábito, descarregou os legumes e as frutas para as refeições da semana. Queria ser gentil e levava as compras até a despensa, onde trocava algumas palavras com frade Antão, responsável pela cozinha. Telmo esperava por esse momento todas as semanas. Afora a gentileza, gostava de perambular pelas instalações do mosteiro. Achava que de alguma forma estava ligado àquele lugar e sentia uma paz indescritível ali.
O frade Valdo o deixava entrar e ficava durante aqueles poucos minutos observando o movimento lá fora. Da mureta que ladeava a entrada do mosteiro podia avistar lá embaixo a agitação da feira e ouvir o burburinho da vida da cidade. Pensava como seria viver lá, em meio ao frenesi da luta pela sobrevivência. Com um desafio novo a cada dia. Valdo havia sido criado pelos frades após a morte de seus pais em um trágico acidente. Era muito grato a eles, mas agora, com vinte anos, começara a ter dúvidas em relação a seu destino.
Durante meses, Telmo e Valdo repetiram o mesmo ritual matinal. Todas as semanas, ao sair do mosteiro, Telmo dava uma última olhada no pátio e na capela e Valdo fechava o portão olhando também uma última vez para a estrada que o levava até a cidade.
Um dia Telmo não apareceu. Em seu lugar veio o senhor Norberto, o dono da venda. Após deixar as compras, Norberto voltou ao portão e frade Valdo lhe perguntou:
 O que houve com nosso irmão Telmo? Está adoentado?
 Não. Ele foi para a capital tratar de uma pequena herança que recebeu de um tio distante. Com ela pretende arrumar uma situação melhor para sua família que vive de forma muito modesta.
  Que Deus o abençoe em sua jornada -  disse Valdo.
  Assim, seja frade. Até a semana.
Valdo ficou pensando na coragem do rapaz. Sair mundo afora para ajudar os seus. Já não escondia de si mesmo o sentimento que procurara manter represado tanto tempo: ele invejava a vida de Telmo. Sabia que era uma existência de trabalho árduo e sem muitas regalias, mas se sentia mais propenso a lutar pela subsistência do que a viver no mosteiro. Não estava certo de sua vocação.
Passados dois meses, o senhor Norberto trouxe a entrega semanal  e ao sair deu a notícia:
  Telmo deve voltar na próxima semana. Ele conseguiu receber a herança e vai comprar uma casinha para os pais com uma garagem à frente, onde vão tocar um pequeno negócio. Estão todos muito felizes.
   Louvado seja o Senhor que ouviu nossas preces.
   Amém, frade. Eu lhe digo uma coisa: aquele menino tem algo especial. Ele tem vinte anos, mas parece distante dos interesses dos outros jovens da sua idade. Sei que ele busca alguma coisa e espero que agora, com sua família em melhor situação, ele consiga encontrar seu destino,  seja ele qual for.
 É preciso coragem para buscar nosso verdadeiro caminho – disse Valdo.
– É verdade. E a coragem de alguns às vezes nos estimula a cultivar a nossa. Já vi muitas histórias assim... Bem, até mais, frade.
  Vá com Deus, senhor Norberto.
Valdo pensou nas palavras do comerciante por toda a semana.
No dia das entregas o sino da entrada soou logo pela manhã. Valdo abriu a pesada porta do mosteiro e viu Telmo com as compras.
Acenaram um cumprimento amistoso, mas não trocaram nenhuma palavra. Telmo levou as encomendas até a dispensa e ao voltar olhou para o frade e parou. Valdo lhe devolveu o olhar e se dirigiu para o portão.
Só que desta vez Telmo o fechou e ficou dentro do mosteiro, enquanto Valdo começava a percorrer a estrada que o levaria a cidade. 

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