18 de fev. de 2012

Zózimo na FLIT




Eu ando pensando na sorte que tenho. Eu, Euzinho, Zózimo Vieira, um matuto saído do sertão de Tapera Boa, convidado para a FLIT! (Festival Literário Internacional de Tapicoã). Um evento desses!
Tem coisa na vida que só o destino explica. O que me valeu foi o dom que recebi e – modéstia à parte – soube explorar: a oratória. Arrisco a dizer que meu povo tem um gene de repentista no sangue. Somado a disso, meu interesse em livros e um jeito observante de viver me levaram a por as palavras no papel. Acrescentei muito suor a essa fórmula e caí no agrado dos leitores.
De repente, estava lá: meu segundo romance na lista dos mais vendidos daquela megalivraria!. Escritor recente, com mais um livro em gestação – essa é licença poética e o homem pode ter – hoje realizo dois sonhos: participar da FLIT e conhecer Nepomuceno Dantas Nobre!
Sim, ele mesmo. Autor de best-sellers, convidado de honra da FLIT, livros traduzidos em cinco línguas, prêmio Jabuti e tudo. Concorrendo a uma vaga na Academia. Sou avesso à tietagem, mas fico extasiado com a facilidade dele encadear ideias, recortar a realidade, temperar os diálogos e esconder e revelar o texto para o leitor.
Mas como nada é perfeito, logo vi um senão: gosto de ser espontâneo, despojado, mas queria ser simpático. Está bem, confesso: impressionar, agradar mesmo, o Nobre. Ele será o mediador da minha mesa. O outro convidado é o Túlio Abrantes. Escritor e crítico literário. Viram a enrascada?
Nepomuceno é um ícone e o Abrantes é conceituado. Eu li um dos seus livros: Contos do Cárcere. E eu? O que eu sou no meio literário? Um matuto de Tapera Boa começando uma carreira. Publiquei alguma coisa, ganhei leitores, mas não tenho o histórico dos bambambãs que vão estar lá comigo. 
Não pensem que não me dou valor. Não. Gosto de mim com defeitos e tudo. A questão é o Zózimo escritor, não o Zózimo pessoa. É que o mundo das letras abriga um seleto alto escalão, e eu não faço parte dele. Vai ser difícil impressionar o Nobre...

Saio do hotel pensando no meu finado pai. Por causa dele nasceu o meu amor pela literatura.  As paredes da minha casa em Tapera Boa eram cobertas de livros. Personagens e cenários invadiram a minha vida desde cedo. Até meu nome foi uma homenagem ao Dostoievsky. Meu pai trocou as letras do nome do padre Zósima dos Irmãos Karamazov, que retratava o monge Ambrósio da Rússia. Pessoa boníssima!
Com essas memórias volitando, eu chego à  FLIT. Cumprimentos, jornalistas, algumas fotos e lá vou eu para a mesa. Vejo Nepomuceno cercado de gente, mas tomo a iniciativa:
– Boa-tarde, sou o Zózimo Vieira. É um grande prazer, senhor Nobre. Aprecio muito suas obras.
– Obrigado, meu rapaz, o prazer é meu – apertando minha mão.
Logo chegou o Túlio e foi muito fotografado. Começamos um bate-papo ameno. Esquentando as turbinas. Nosso tema era “A ficção atual: autores e obras.”
Surgiu então uma mocinha do comitê de organização da FLIT, branquinha como cal virgem:
– Senhores, teremos um atraso por questões técnicas. Se quiserem circular, há estandes de editoras no anexo.
Saímos. No caminho o Nobre engatou uma conversa animada, ao que parece com velhos conhecidos. O Abrantes foi abordado por uma morena, e eu os deixei à vontade. Falei com dois jornalistas e – leitor voraz – fui olhar os lançamentos. Por incrível que pareça eu vim para a FLIT sem um livro na bagagem. Falha de convidado estreante. Vou ficar dois dias em Tapicoã e não durmo sem ler. A leitura é um poderoso benzodiazepínico sem efeitos colaterais.
Num dos estandes pego, por curiosidade, o livro em destaque entre os mais vendidos. Autor estrangeiro, segunda edição. A quarta capa traz impressões: “Estilo ácido e cortante!”; “Realista. De suas páginas sente-se escorrer sangue...” ; “Um texto seco, underground. Excelente!”
Deixei lá. Eu não durmo sem ler, mas se o lesse ficaria sem dormir.
Olhei aqui e ali e resolvi voltar. E começou a FLIT.
O Abrantes falou primeiro. Fez um retrospecto da literatura nacional,  citou obras de peso e as preferências da ficção atual. Em seguida me coube falar sobre literatura e realidade. Como estava nervoso, eu fui conciso:
 Penso que escritores gostam de livros, mas sobretudo de pessoas, do que há dentro delas. Personagens são os fios condutores das tramas tecidas pelas agulhas da mente do autor. E com eles a ficção recria a realidade. Remete o leitor a uma identificação pessoal ou a um contexto social. No mundo real temos focos de tensão, os autores captam esses instantâneos, vestem seus personagens e os confinam nos livros. Vivemos uma fase obscura, aturdida com a tecnologia veloz, a celebração do superficial, as desigualdades, a ética relativa e o vazio interior que a muitos assola. Mas a humanidade progride em declínio e ascensão. Assim como Idade Média nos legou o Renascimento, iremos da obscuridade para uma fase luminosa. A literatura germinará esperança, traduzindo o desejo quase inconsciente de uma maior clareza nos valores internos e sociais. Creio que a ficção seguirá por aí.
O Nobre nos elogiou e passou às perguntas da plateia.  As primeiras foram para o Túlio:
Qual sua opinião sobre a recente obra de fulano?
Abrantes esmerilhou:
– Ele domina bem o texto. Gosto da sua não linearidade. Suas cenas e diálogos são vívidos. Eu o recomendo.
Que diferenças há entre e beltrano e cicrano, autores de estilos semelhantes?
Lá ia o Abrantes, arrasando:
–  Beltrano trata bem o fluxo da consciência. E cicrano equilibra o ritmo~e e a coesão do texto. Elogiei na ‘Capítulo Final’ o narrador onisciente do seu livro “Opulenta Miséria” que deu densidade ao discurso.
O Abrantes foi impecável nas respostas e ganhou a simpatia da plateia. Também respondi algumas perguntas, mas o tempo passou e não tive, nem de longe, a chance de impressionar o Nobre.
Ao final, uma última questão foi dirigida a nós dois:
A ficção se transformou e o leitor também. Como criar um bom romance na atualidade?
O Abrantes começou:
– Um bom livro precisa de uma boa técnica. De saber usar recursos na narrativa e nos diálogos. É preciso  prender o leitor pelo texto. Já os temas podem variar. Há espaço para tudo.
Era minha vez. E eu, sem querer, rangi os dentes para o Abrantes:
 Para um bom livro, ser criativo é um bom ponto de partida. Persistência também ajuda. Quanto à técnica, admito que seja importante, mas literatura é arte. E não dá para dizer que tudo o que nela é bom só advém do domínio da técnica.
Dei um tiro no pé. Depois desse deslize é que eu não ia mesmo impressionar o Nobre. Agora, a chance se fora...
A plateia nos aplaudiu e o mediador tomou a palavra:
– Caríssimos, foi um encontro muito produtivo! – fez algumas considerações e então rematou:
– Notei o interesse pela criação de uma obra. Lembrei-me de Homero, pai da literatura ocidental. Vejam Ilíada e Odisséia. Obras-primas. E à época não havia teoria da literatura. Sei que um bom livro requer esforço e dedicação, mas deixem espaço para o que precede a teoria. Escrevam com o coração.
As palmas ecoaram pelo salão. Jornalistas e fotógrafos se acercaram e se chocaram como moscas a nossa volta. Acabaram formando uma blindagem humana entre nós. Daí para frente não vi mais nada. Não cheguei a olhar para o Abrantes e nem me despedi do Nobre! Quando dei por mim haviam levado os dois para os estandes das editoras.

              Saio de mansinho. Preciso digerir o acontecido e comprar um livro. Ou talvez volte ao hotel e releia o Castro Alves esquecido pelo hóspede que ocupou meu quarto até ontem. Para sonhar com dias mais ensolarados... 

Um comentário:

Paul disse...

Este é um manifesto em favor da filocalia . Amor ao belo. Onde houver luz a beleza real estará presente.Texto muito bom , conteúdo e forma!

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