Eu ando pensando na sorte que tenho. Eu, Euzinho, Zózimo Vieira, um matuto saído do sertão de Tapera Boa, convidado para a FLIT! (Festival Literário Internacional de Tapicoã). Um evento desses!
Tem coisa na vida que só o destino explica. O que me valeu foi o dom que recebi e – modéstia à parte – soube explorar: a oratória. Arrisco a dizer que meu povo tem um gene de repentista no sangue.
Somado a disso, meu interesse em livros e um jeito observante de viver me
levaram a por as palavras no papel. Acrescentei muito suor a essa fórmula e caí
no agrado dos leitores.
De repente, estava lá: meu segundo romance na lista dos
mais vendidos daquela megalivraria!. Escritor recente, com mais um livro em
gestação – essa é licença poética e o homem pode ter – hoje realizo dois
sonhos: participar da FLIT e conhecer Nepomuceno Dantas Nobre!
Sim,
ele mesmo. Autor de best-sellers, convidado de honra da FLIT, livros
traduzidos em cinco línguas, prêmio Jabuti e tudo. Concorrendo a uma vaga na
Academia. Sou avesso à tietagem, mas fico extasiado com a facilidade dele
encadear ideias, recortar a realidade, temperar os diálogos e esconder e revelar
o texto para o leitor.
Mas
como nada é perfeito, logo vi um senão: gosto de ser espontâneo, despojado,
mas queria ser simpático. Está bem, confesso: impressionar, agradar mesmo, o
Nobre. Ele será o mediador da minha mesa. O outro convidado é o Túlio Abrantes.
Escritor e crítico literário. Viram a enrascada?
Nepomuceno
é um ícone e o Abrantes é conceituado. Eu li um dos seus livros: Contos do
Cárcere. E eu? O que eu sou no meio literário? Um matuto de Tapera Boa
começando uma carreira. Publiquei alguma coisa, ganhei leitores, mas não tenho
o histórico dos bambambãs que vão estar lá comigo.
Não pensem que não me dou
valor. Não. Gosto de mim com defeitos e tudo. A questão é o Zózimo escritor,
não o Zózimo pessoa. É que o mundo das letras abriga um seleto alto escalão, e
eu não faço parte dele. Vai ser difícil impressionar o Nobre...
Saio do hotel pensando no meu finado pai. Por causa dele nasceu o meu amor pela literatura. As paredes da minha casa em Tapera Boa eram cobertas de livros. Personagens e cenários invadiram a minha vida desde cedo. Até meu nome foi uma homenagem ao Dostoievsky. Meu pai trocou as letras do nome do padre Zósima dos Irmãos Karamazov, que retratava o monge Ambrósio da Rússia. Pessoa boníssima!
Com essas
memórias volitando, eu chego à FLIT. Cumprimentos, jornalistas, algumas
fotos e lá vou eu para a mesa. Vejo Nepomuceno cercado de gente, mas tomo
a iniciativa:
– Boa-tarde, sou o Zózimo Vieira. É um grande
prazer, senhor Nobre. Aprecio muito suas obras.
–
Obrigado, meu rapaz, o prazer é meu – apertando minha mão.
Logo
chegou o Túlio e foi muito fotografado. Começamos um bate-papo ameno.
Esquentando as turbinas. Nosso tema era “A ficção atual: autores e obras.”
Surgiu então uma mocinha do comitê de organização da
FLIT, branquinha como cal virgem:
– Senhores,
teremos um atraso por questões técnicas. Se quiserem circular, há estandes de
editoras no anexo.
Saímos.
No caminho o Nobre engatou uma conversa animada, ao que parece com velhos
conhecidos. O Abrantes foi abordado por uma morena, e eu os deixei
à vontade. Falei com dois jornalistas e – leitor voraz – fui
olhar os lançamentos. Por
incrível que pareça eu vim para a FLIT sem um livro na bagagem. Falha de
convidado estreante. Vou ficar dois dias em Tapicoã e não durmo sem ler. A
leitura é um poderoso benzodiazepínico sem efeitos colaterais.
Num dos
estandes pego, por curiosidade, o livro em destaque entre os mais vendidos.
Autor estrangeiro, segunda edição. A quarta capa traz impressões: “Estilo ácido e cortante!”; “Realista. De suas páginas sente-se
escorrer sangue...” ; “Um texto seco, underground. Excelente!”
Deixei
lá. Eu não durmo sem ler, mas se o lesse ficaria sem dormir.
Olhei
aqui e ali e resolvi voltar. E começou a FLIT.
O
Abrantes falou primeiro. Fez um retrospecto da literatura nacional, citou obras de peso e as preferências da
ficção atual. Em seguida me coube falar sobre literatura e realidade. Como estava nervoso, eu fui conciso:
– Penso
que escritores gostam de livros, mas sobretudo de pessoas, do que há dentro
delas. Personagens são os fios condutores das tramas tecidas pelas agulhas da
mente do autor. E com eles a ficção recria a realidade. Remete o leitor a uma
identificação pessoal ou a um contexto social. No mundo real temos focos de
tensão, os autores captam esses instantâneos, vestem seus personagens e os confinam nos livros. Vivemos
uma fase obscura, aturdida com a tecnologia veloz, a celebração do
superficial, as desigualdades, a ética relativa e o vazio interior que
a muitos assola. Mas a humanidade progride em declínio e ascensão. Assim como Idade
Média nos legou o Renascimento, iremos da obscuridade para uma fase luminosa.
A literatura germinará esperança, traduzindo o desejo quase inconsciente de uma
maior clareza nos valores internos e sociais. Creio que a ficção seguirá por
aí.
O Nobre
nos elogiou e passou às perguntas
da plateia. As primeiras foram para o Túlio:
Qual
sua opinião sobre a recente obra de fulano?
Abrantes
esmerilhou:
– Ele
domina bem o texto. Gosto da sua não linearidade. Suas cenas e diálogos são vívidos. Eu o recomendo.
Que
diferenças há entre e beltrano e cicrano, autores de estilos semelhantes?
Lá ia o
Abrantes, arrasando:
– Beltrano trata bem o fluxo da consciência. E
cicrano equilibra o ritmo~e e a coesão do texto. Elogiei na ‘Capítulo Final’ o narrador onisciente do seu livro “Opulenta Miséria” que deu densidade
ao discurso.
O
Abrantes foi impecável nas respostas e ganhou a simpatia da plateia.
Também respondi algumas perguntas, mas o tempo passou e não tive, nem de longe, a
chance de impressionar o Nobre.
Ao
final, uma última questão foi dirigida a nós dois:
A
ficção se transformou e o leitor também. Como criar um bom romance na
atualidade?
O
Abrantes começou:
– Um
bom livro precisa de uma boa técnica. De saber usar recursos na narrativa e nos
diálogos. É preciso prender o leitor pelo
texto. Já os temas podem variar. Há espaço para tudo.
Era minha
vez. E eu, sem querer, rangi os dentes para o Abrantes:
– Para um
bom livro, ser criativo é um bom ponto de partida. Persistência também ajuda. Quanto
à técnica, admito que seja importante, mas literatura é arte. E não dá para
dizer que tudo o que nela é bom só advém do domínio da técnica.
Dei um
tiro no pé. Depois desse deslize é que eu
não ia mesmo impressionar o Nobre. Agora, a chance se fora...
A plateia nos aplaudiu e o mediador tomou a palavra:
–
Caríssimos, foi um encontro muito produtivo! – fez algumas considerações e então
rematou:
– Notei
o interesse pela criação de uma obra. Lembrei-me de Homero, pai da literatura
ocidental. Vejam Ilíada e Odisséia. Obras-primas. E à época não havia teoria da
literatura. Sei que um bom livro requer esforço e dedicação, mas deixem espaço para
o que precede a teoria. Escrevam com o coração.
As palmas ecoaram pelo salão. Jornalistas e fotógrafos se acercaram e se chocaram como moscas a nossa volta. Acabaram formando uma blindagem humana
entre nós. Daí para frente não vi mais nada. Não cheguei a olhar para o Abrantes
e nem me despedi do Nobre! Quando dei por mim haviam levado os dois para os
estandes das editoras.
Saio de mansinho. Preciso digerir o acontecido e comprar um livro. Ou talvez
volte ao hotel e releia o Castro Alves esquecido pelo hóspede que ocupou meu
quarto até ontem. Para sonhar com dias mais ensolarados...
Um comentário:
Este é um manifesto em favor da filocalia . Amor ao belo. Onde houver luz a beleza real estará presente.Texto muito bom , conteúdo e forma!
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