Os estilhaços se
espalharam pelo chão.
Isolei a área e
recolhi cada pequeno fragmento. Como um perito forense fui identificando os
cacos, um a um, buscando reconstituir a antiga peça da dinastia Ming.
Bem, não
era um original de seis milhões de dólares, mas era uma réplica perfeita. E
carregava uma história. O vaso tinha uma biografia que bem podia ser
publicada...
Intriga-me ele ter
durado décadas, resistido a mudanças, viagens, tragédias e agora ter se
espatifado. Uma súbita rajada de vento e lá se foi a peça tratada com esmero
por tantos anos. Soa irônico. Coisas,
pessoas, histórias que se evaporam num triz! Por um nada, deixam de existir. Carreiras
são destruídas, amores perdidos, amizades dilaceradas... Casualidades,
dizem alguns. Não creio que elas tenham esse
poder – de aniquilar as coisas e as vidas. Talvez o destino. Talvez o livre
arbítrio enevoado pela má percepção do mundo.
Durante
dois dias me dediquei à restauração com um empenho quase obsessivo. Ouvi de tudo: Não perca tempo, jogue fora! Pra
que isso? Não adianta, nunca mais vai ser o mesmo.
Trabalhei na base
bojuda da peça para refazer o desenho da frente. Colei a parte que mostrava
duas asas vermelhas de uma linda ave. A queda as partiu em metades idênticas e
senti prazer em reconstruí-las. Minhas asas também foram partidas. Não uma, mas
várias vezes. Quando não pude alçar voos panorâmicos sobre a colina, voei aos
poucos sobre as copas das árvores. E aquela linda ave também merecia voar.
Cheguei à parte do desenho que estampava flores azuis
desabrochadas. Agora pareciam um mosaico. Colei as pétalas com cuidado e
consegui recompor a harmonia das formas. Ficaram perfeitas. Minhas formas também
mudaram com o passar dos anos e me esforcei para que se ajustassem as suas
melhores condições.
Quase ao final, atingi
a folhagem verde que acompanhava o exótico buquê azul. Ela exibia sua graça,
mas na composição da peça servia como uma moldura para as flores em seu
esplendor. Com paciência, refiz as bordas irregulares das folhas. Era
importante que ocupassem novamente seu papel secundário. Também já fui moldura
enquanto outros brilhavam, mas não me retirei. Havia valor no que eu fazia.
Olhei
para o vaso. Estava pronto. Bem ao estilo wabi-sabi: o valor da beleza imperfeita. Como o
único ponto imperfeito dos valiosos tapetes persas – um ponto ao léu, para registrar
nossa humanidade.
E
agora eu tinha um dilema. O que fazer com o Ming restaurado. Um conflito parido
da minha própria obsessão. Podia recolocá-lo em destaque na sala ou retirá-lo
para um canto discreto, onde suas pequenas imperfeições fossem menos
percebidas.
Lembrei-me dos
museus. As caixas de vidro e os alarmes que isolam jóias e obras de arte não existem
só para prevenir furtos. Mas para mantê-las intactas, protegidas de mãos inábeis,
de casos fortuitos. O que é belo deve permanecer íntegro – parece ser a regra geral.
Sempre tive apreço
pelo meu belo exemplar da arte cerâmica e agora ele não estava mais íntegro.
Esse vaso já viveu
muito, mas aqui só interessa contar que me foi dado por alguém que não podia
pagar uma pequena dívida e fez questão de me entregar algo que lhe era caro. Ele
pertencera a sua avó e lhe dera sorte. Ela o recebeu em troca da farinha que
vendeu a uma família recém-fugida da guerra, que não dispunha de posses, mas
precisava de pão.
Casualidade ou não,
o vaso escapou de bombardeios, viveu refugiado, alimentou crianças e chegou até
mim após ter sido amuleto e moeda de escambo.
Ao
longo dos anos, cada um dos seus donos juntou seus cacos de vida e seguiu em frente. E o vaso,
tão bem cuidado, os protegeu nas horas incertas. Hoje sou parte da história. Como
um perito, recolhi meus cacos e continuo aqui.
No fim do dia
resolvi meu conflito e levei o vaso para o local escolhido.
Onde
eu o coloquei?
Só
digo que ele ainda existe, e está lá, pronto para receber flores novamente.
Um comentário:
Maravilhoso!
Abraços!
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