3 de mar. de 2012

Restauração

Os estilhaços se espalharam pelo chão.
Isolei a área e recolhi cada pequeno fragmento. Como um perito forense fui identificando os cacos, um a um, buscando reconstituir a antiga peça da dinastia Ming.

Bem, não era um original de seis milhões de dólares, mas era uma réplica perfeita. E carregava uma história. O vaso tinha uma biografia que bem podia ser publicada...
Intriga-me ele ter durado décadas, resistido a mudanças, viagens, tragédias e agora ter se espatifado. Uma súbita rajada de vento e lá se foi a peça tratada com esmero por tantos anos. Soa irônico. Coisas, pessoas, histórias que se evaporam num triz! Por um nada, deixam de existir. Carreiras são destruídas, amores perdidos, amizades dilaceradas... Casualidades, dizem alguns. Não creio que elas tenham esse poder – de aniquilar as coisas e as vidas. Talvez o destino. Talvez o livre arbítrio enevoado pela má percepção do mundo.
Durante dois dias me dediquei à restauração com um empenho quase obsessivo. Ouvi de tudo: Não perca tempo, jogue fora! Pra que isso? Não adianta, nunca mais vai ser o mesmo.
Trabalhei na base bojuda da peça para refazer o desenho da frente. Colei a parte que mostrava duas asas vermelhas de uma linda ave. A queda as partiu em metades idênticas e senti prazer em reconstruí-las. Minhas asas também foram partidas. Não uma, mas várias vezes. Quando não pude alçar voos panorâmicos sobre a colina, voei aos poucos sobre as copas das árvores. E aquela linda ave também merecia voar.

Cheguei à parte do desenho que estampava flores azuis desabrochadas. Agora pareciam um mosaico. Colei as pétalas com cuidado e consegui recompor a harmonia das formas. Ficaram perfeitas. Minhas formas também mudaram com o passar dos anos e me esforcei para que se ajustassem as suas melhores condições.

Quase ao final, atingi a folhagem verde que acompanhava o exótico buquê azul. Ela exibia sua graça, mas na composição da peça servia como uma moldura para as flores em seu esplendor. Com paciência, refiz as bordas irregulares das folhas. Era importante que ocupassem novamente seu papel secundário. Também já fui moldura enquanto outros brilhavam, mas não me retirei. Havia valor no que eu fazia.
Olhei para o vaso. Estava pronto. Bem ao estilo wabi-sabi: o valor da beleza imperfeita. Como o único ponto imperfeito dos valiosos tapetes persas um ponto ao léu, para registrar nossa humanidade.
E agora eu tinha um dilema. O que fazer com o Ming restaurado. Um conflito parido da minha própria obsessão. Podia recolocá-lo em destaque na sala ou retirá-lo para um canto discreto, onde suas pequenas imperfeições fossem menos percebidas.
Lembrei-me dos museus. As caixas de vidro e os alarmes que isolam jóias e obras de arte não existem só para prevenir furtos. Mas para mantê-las intactas, protegidas de mãos inábeis, de casos fortuitos. O que é belo deve permanecer íntegro parece ser a regra geral.
Sempre tive apreço pelo meu belo exemplar da arte cerâmica e agora ele não estava mais íntegro.
Esse vaso já viveu muito, mas aqui só interessa contar que me foi dado por alguém que não podia pagar uma pequena dívida e fez questão de me entregar algo que lhe era caro. Ele pertencera a sua avó e lhe dera sorte. Ela o recebeu em troca da farinha que vendeu a uma família recém-fugida da guerra, que não dispunha de posses, mas precisava de pão.
Casualidade ou não, o vaso escapou de bombardeios, viveu refugiado, alimentou crianças e chegou até mim após ter sido amuleto e moeda de escambo.
Ao longo dos anos, cada um dos seus donos juntou seus cacos de vida e seguiu em frente. E o vaso, tão bem cuidado, os protegeu nas horas incertas. Hoje sou parte da história. Como um perito, recolhi meus cacos e continuo aqui. 
No fim do dia resolvi meu conflito e levei o vaso para o local escolhido.
Onde eu o coloquei?
Só digo que ele ainda existe, e está lá, pronto para receber flores novamente.

Um comentário:

Helena disse...

Maravilhoso!
Abraços!

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