13 de jan. de 2014

Como um quadro de Dalí




Texto premiado no VIII Prêmio Escriba de Contos

com publicação em Antologia (2013). 


Em algum lugar do mundo...
O sol escaldante abrasava os corpos nas filas de atendimento. Jaziam todos imóveis como lagartos ao sol. No senso comum, a regra tácita era não se mover.
No salão repleto de gente a luz transpassava os vidros dos janelões enferrujados e ofuscava os olhares dos usuários do sistema, cegando-os temporariamente. Cumplicidade do arquiteto.
No fim da segunda fila postava-se o senhor Gervásio da Silva Matos  ̶̶̶̶  carpinteiro aposentado e poeta em formação  ̶̶̶̶  catalogado como um dos espécimes dessa estufa humana, que observava o ambiente, apreensivo. Do seu ponto vista, a fila que lhe precedia parecia composta por bonecos de cera submetidos a uma reação química ardilosa e cruel: a parafina lhes escorria sob a forma de gotas de suor quando em contato com o descaso e com aquela temperatura saárica, transformando-os em objetos disformes.
O calor sufocava e a sensação de impotência, idem.
Coroando o cenário, na parede ao fundo um relógio plástico se derretia e avançava len-ta-men-te. Outro conivente.
A mente do senhor Gervásio pululava aversa à sintonia reinante. Se não precisasse tanto ia embora. Devia ter trazido um livro ou um bloquinho para rabiscar meus versos. Pensando bem, ler em pé me dá tontura. É essa labirintite. Bem que o médico falou: não pare o remédio senão ela volta. Mas eu tinha melhorado e não me arrependo. Com aquele dinheiro comprei a madeira e fiz as cadeirinhas para o Franco e a Maura. Eles adoraram. 
Gervásio sorriu. A lembrança das crianças era um grande lenitivo. E por causa delas começara a fazer poesias. Na ocasião, fora internado para uma cirurgia de varizes. Com esta fila as veias inchadas vão voltar. Sua filha foi vê-lo no hospital levando uma cesta de frutas e um versinho das crianças: 
Querido vovô, queremos te ver.
Esperamos você, não vai esquecer!
Beijos de chocolate!
Franco e Maura
          A pureza... Gervásio leu e amou. E nesse exato instante lhe veio à mente um passado perdido: ele gostava de rabiscar versos na adolescência. Uma lembrança súbita, como se a memória tivesse pulado para fora de uma caixa como aqueles palhaços com molas.
           Desde então, Gervásio vislumbrou um novo sentido para sua vida comedida de aposentado: escrever poesias. E quem sabe um dia – por que não? – publicá-las.
           Ele estudara até o colegial – à época. Mas na fábrica de móveis onde trabalhou por quase trinta anos tinha sempre um livro por companheiro. Na hora do almoço, no refeitório, desvendava os ingredientes ocultos das caçarolas e dos mistérios policiais, devorava bifes e romances e enquanto abocanhava aquele bandejão, alimentava,  mais do que seu estômago, sua alma.
          De tal sorte, sua decisão de ser poeta que alguns julgariam algo aventureira para um homem simples como ele, se amparou em sólidos precedentes: a familiaridade com bons textos literários, a afeição pela leitura que lhe conferiu um bom vocabulário atrelado a uma dose extra de cultura e uma bagagem de vida substancial. Ingredientes suficientes para uma alma sensível apurar o caldo de seus anseios na forma de versos primorosos.
A fila avançou um centímetro e Gervásio observou à frente uma senhora obesa com sacolas de compras e o semblante abatido por ver o relógio marcar cada minuto desperdiçado da sua vida já quase vivida. O peso esteado nas mãos e nos braços catapultou a decisão da tal mulher: abandonar a fila.  Ele viu as sacolas se afastando, desoladas.
Queria ir ao mercado no fim do dia. Se minhas forças não se esgotarem nesta espera agônica. E se eu sacar meu benefício. Preciso prover aquela geladeira vazia. Calma Gervásio, não se empolgue. O queijo branco fica para o próximo mês. As bolachas de aveia e mel, também. Tem de sobrar para o remédio da pressão, a lente dos óculos e a conta de luz. Vão uns duzentos aí. Se eu calcular bem, economizo no resto e cometo a extravagância: compro as passagens para ver os pequenos poetas.
O choro de uma criança ecoou entre suores e lágrimas de cera.
Crianças... Há seis meses não as vejo. Nesta idade posso morrer de repente. É sempre bom dar as caras aos netos. Já há uns dois anos imagino que minhas visitas têm ares de última vez. Deus tem sido generoso e resolveu decidir meu jogo na prorrogação.
Hora e meia depois, brindado pela sorte de mais três desistências e com dois versinhos prontos na cabeça, o senhor Gervásio chega ao balcão:
– Bom-dia. Vim renovar meu cartão de benefício.
– Trouxe a identidade? – indagou a moça de ar pernóstico, adornada por um aro de óculos que imitava pele de cobra e uma pulseira abarrotada de pingentes.
– Sim, aqui está.
Ela pegou o documento e consultou o computador. Olhou para o senhor Gervásio com uma expressão que se resumia a um contínuo e visceral enfado. Como se tivesse um desalento crônico forjado pelo peso de cem quilos sobre os ombros.
Ele percebeu. A burocracia, talvez.
– Para renovar o cartão preciso da declaração de vida – disse em tom monocórdio.
– Declaração de vida? O que é isso?
– É o documento que prova que o senhor está vivo.
– Mas eu estou vivo. Não estou falando aqui com você?
– Preciso a declaração escrita. Para provar que é o senhor mesmo.
– Eu sou eu mesmo. Você viu meu documento.
– Isso não basta. Tem gente que furta identidades e vem pegar o cartão de benefício – e esfregou a haste lateral dos óculos como se a cobra fosse trocar de pele.
Meu Deus, que mundo é esse! Correr o risco de ser pego por tão pouco...
– Moça, a identidade tem foto. Dá para ver que sou eu e não outro. E tem a digital. Posso carimbar o polegar na tinta e provar que é o da carteira.
– Não serve, senhor. A declaração deve ser passada em cartório com duas testemunhas e firmas reconhecidas.
Gervásio reagiu como seu pai fazia em circunstâncias assim: tirou as lentes para ouvir melhor. Olhou em volta e procurou por câmeras. Depois, inclinou-se sobre o guichê de vidro fosco e sussurrou:
  Isso é uma pegadinha, não é?
A moça arregalou os olhos e espichou o pescoço.  Ah! Agora ela vai dar o bote...
– Não, senhor, são as regras.
Gervásio recolocou os óculos e respirou fundo.
– Sem isso eu não recebo?
– Exato    trocando uma colher de enfado por duas pitadas de impaciência.
– Está certo. Então vamos lá: moça, eu moro sozinho, minha família é do interior. Meus amigos próximos morreram e tenho um único vizinho que pode me ajudar. Há um cartório a duas quadras daqui e não posso ficar sem receber. Quando você sair pode ser minha segunda testemunha?
– Não, senhor – balançando os guizos do punho ao devolver o documento.
– Você está me vendo! Pode testemunhar.
– Eu posso vê-lo, mas servidores não podem fazer isso.
Ora, ora, afinal admite que estou vivo. Foi um grande passo. Então para que o papel?
– Já disse, para evitar fraudes – num tom que exalava irritação. – Não posso fazer nada e o senhor tem que desocupar o guichê. Está atrasando o atendimento.
  Você tem razão. O atendimento está atrasado. Vinte anos ou trinta. Mas não por minha causa. E vou lhe contar uma coisa: quem furta documentos também pode ir com a identidade furtada e dois comparsas a um cartório e passar essa declaração. Já pensou nisso?
A jovem corou e se contorceu na cadeira. Gervásio a imaginou em plena metamorfose ofídia, mas não se intimidou. O médico receitou o remédio de pressão feito de veneno de cobra. Estou imunizado.
– Senhor...
– Mas sabe, há algo que você pode fazer – arrematou, com toda a calma do mundo. – Diga aos seus chefes que alguém lúcido passou por aqui. Que começamos a enxergar. Quem sabe uma alma se salva e alguém decide poupar os idosos de mais um transtorno e uma despesa no fim miserável de suas vidas.
A moça franziu o cenho e emudeceu. Gervásio viu que ela estava em choque.
Anafilático, por certo. Deve ter mordido o lábio.
– Agora preciso ir para você destilar o veneno burocrático em outras vítimas.
Virou-se e saiu aturdido porta afora. Caminhou a esmo por uns dez minutos. Suas pernas de cera o levaram a uma pracinha onde um banco vazio o convidou a sentar. A seus pés, formigas diminutas cruzavam o chão produtivas e orgulhosas, carregando folhas. Sentiu-se menor do que elas. Impossível encarar a experiência que vivera como um mero contratempo. Era muito mais. Uma tatuagem em brasa na sua pele escarnecida. A que se resumia sua existência de quase oitenta anos?
Sentiu o peito explodir. Não conseguiu manter represado o pensamento que se insinuou desde o primeiro momento: o constrangimento a que teria que se submeter se não quisesse morrer de fome. Que mundo é esse... Nem ao menos presto para provar que estou vivo sem depender dos outros.
Tentou pôr a mente em ordem. Arrastou os pensamentos para as crianças, para os seus versos e lembrou-se de que era um poeta. Isso devia significar alguma coisa. Ou talvez não. O poeta é um fingidor. Finge tão completamente que chega a fingir que é  dor, a dor que deveras  sente. Esse é um poeta!
Viajou pelo tempo até encontrar seu avô. Era o amigo a quem recorria quando lhe faltavam certezas. Comungavam duma sintonia especial. Uma ligação forte o bastante para puxar as correntes do passado e lhe trazer à baila uma de suas falas: “O homem digno carrega sua dignidade mesmo que aparentemente lha tenham tirado.” 
Gervásio teve sua certeza. Ergueu a cabeça e saiu decidido a resolver a questão.
Horas depois, com a boa vontade de seu vizinho arrumou uma segunda testemunha e obteve a declaração que lhe custou as refeições de três dias. Com os últimos trocados pagou um pastel com garapa aos dois senhores, agradeceu compungido e seguiu para a estufa.
O calor se mantinha. Novos espécimes compunham as filas do museu de cera e por ironia ou destino ele caiu novamente na toca da serpente.
– Boa-tarde. Vim trazer a declaração.
A servidora o reconheceu. Recebeu pelo guichê o papel timbrado, carimbado e selado do cartório. Gervásio notou que ela se deteve perscrutando o documento.
  Está tudo certo?
  Faltou reconhecer a firma do tabelião.
Ele enxugou o suor do rosto com um lenço e replicou com a voz cansada:
– Eu sou simples, mas sei que tabeliães têm fé pública. Essa exigência é um contrassenso.
A moça estreitou os olhos, mas pareceu perturbada com a obviedade. Pediu que a aguardasse e saiu.
Ao voltar, espichou o pescoço pelo reptilário até a boca do guichê e lhe entregou o cartão de benefício. Gervásio saiu em silêncio e não exatamente com uma sensação de vitória. Esquadrinhou o ambiente e os que lá estavam, parou um instante e sentiu os lábios se contraírem.
Quebrando o clima desolador, seu celular velhinho, sem câmera e sem Internet, tocou:
– Vovô? Tudo bem?
– Oi, princesa! Que bom falar com você!
– A mamãe vai dar uma festa no meu aniversário, semana que vem. Você vem? Prometeu fazer uma poesia para mim, lembra?
O poeta olhou o cartão em sua mão e seus olhos umedeceram.
 – Claro que vou, minha flor.
Pequenos e velhos poetas têm algo em comum.
           Minutos depois, ainda no salão, Gervásio – comprovadamente vivo – pensava nos versos que faria para Maura.
           Preciso de uma palavra para rimar com esperança...
           Fechou os olhos, encolheu-se todo e levou a mão ao peito. Uma dor aguda e cruciante o nocauteou. O poeta agora agoniza na UTI. Segundo os médicos, o infarto o deixou com a mente confusa. Não diz coisa com coisa, fica repetindo a mesma frase.
           Preciso de uma palavra para rimar com esperança... 

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