Ainda hoje, passados cinco anos, penso
em como tudo aconteceu.
Eu trabalhava o dia todo e
encerrava minhas pesquisas ao pôr-do-sol. Um dos hábitos que eu cultivava à
época era o jantar no Giácomo. Um verdadeiro ritual numa cantina típica do
Piemonte. Todo fim de tarde eu me sentava à mesma mesa na calçada e lia prazerosamente
as opções do cardápio. Aquela era a melhor comida da região. Pedia uns petiscos
de entrada, um prato principal acompanhado de uma taça de vinho e depois ficava
ali por um tempo assistindo à tradicional apresentação de violinos da casa.
Tudo era perfeito, a não ser pelo ‘enigma
da cliente anterior’, que me intrigava.
Havia uma moça que também se sentava à minha mesa todos os dias, um pouco antes de mim. Eu nunca a vi, mas ela tinha o hábito de criar suas obras nos guardanapos e era uma exímia desenhista. Usava duas cores de batom e um lápis de olhos para traçar e colorir suas paisagens e as deixava dobradas embaixo do porta-guardanapos, aparentemente para que alguém as encontrasse.
Havia uma moça que também se sentava à minha mesa todos os dias, um pouco antes de mim. Eu nunca a vi, mas ela tinha o hábito de criar suas obras nos guardanapos e era uma exímia desenhista. Usava duas cores de batom e um lápis de olhos para traçar e colorir suas paisagens e as deixava dobradas embaixo do porta-guardanapos, aparentemente para que alguém as encontrasse.
E eu as encontrava.
Comecei a ficar curioso. Como
seria ela? Alguém diferente. Ela criava desenhos do nada com uma técnica como a
do carvão. Só que carvão colorido... Como podia ser tão paradoxal?
Imprevisível a ponto de me deixar sempre uma inesperada paisagem, e previsível a ponto de se sentar todos os dias à mesma hora à mesma mesa?
Resolvi que passaria a chegar mais
cedo para tentar encontrá-la. Mas eu estava terminando minha tese de história e
seguia uma rotina rígida. Consegui me liberar antes do horário só dois dias na
semana. Mas por alguma razão nesses dias ela não apareceu.
Na semana seguinte não consegui
chegar mais cedo, contudo continuei vendo seus desenhos e a guardá-los, dia após
dia. Até que tive a ideia de lhe deixar um bilhete no guardanapo. Escrevi, dobrei-o e o deixei com o garçom:
– Por favor, entregue amanhã à
moça que se senta nesta mesa antes de mim.
– Sì... Una
bella ragazza...
Agradeci, mas saí rapidamente. Não
queria que ele me contasse nada sobre ela. Não me interessava saber dela por um
terceiro. Queria conhecê-la mantendo aquela relação direta e incomum.
No dia seguinte, junto com a
paisagem que mimetizava o carvão, havia uma resposta (originalmente em
italiano):
Caro Javier,
Fico feliz que goste dos meus desenhos. Agradeço
o convite para jantar, mas estou indo embora hoje. Anotei seu e-mail e farei
contato. Até breve, Geórgia.
Aquela noite não dormi, me
xingando.
Por quê esperei tanto? Fui deixar
o bilhete justo no dia da sua partida... Devia ser uma mulher interessante... E
estava indo para onde? Se eu tivesse sido mais rápido...
Esperei. Eu só tinha mais uma
semana ali e no dia da minha partida uma mensagem de Geórgia chegou:
Olá Javier,
Tive uns dias agitados, mas agora
gostaria de convidá-lo para jantar. Que tal sábado? Conheço uma cantina tão boa
quanto a do Giácomo. Geórgia.
Achei que era uma maldição do
destino. Sábado eu já estaria em São Paulo!
E só aí me dei conta que essa
mensagem veio escrita em português!
Ela devia estar no Brasil. Mas como
pretendia me mostrar a tal cantina? Ela devia saber que eu estaria lá. De
alguma forma ela sabia mais do que eu imaginava...
Entrei no jogo. Respondi o e-mail
aceitando o convite e perguntando o local. A resposta não demorou:
Javier,
Mande o endereço do seu trabalho
ou de sua casa. Um motorista vai pegar você às oito. Há uma mesa reservada.
Encontro você lá.
Geórgia
No anexo da mensagem havia uma
imagem digitalizada de um guardanapo. Nele, o desenho de uma praça arborizada em
“carvão-batom”, como passei a chamá-lo.
O jogo estava ficando mais
intrigante. Eu iria num encontro às cegas! Coisa estranha... Mais que isso:
poderia chamá-lo de encontro às surdas e às mudas também, considerando que
nunca havia escutado a voz de Geórgia, nem lhe dito nenhuma palavra pessoalmente.
E o fato dela saber que eu voltara
ao Brasil? E que eu vivia em São Paulo? Teria pego informações com o garçom? Ou
no meu hotel?
Agora ia me dirigir a um local
desconhecido, com um motorista desconhecido, para o encontro com uma
desconhecida. E se ela fosse uma daquelas psicóticas dos filmes? Provavelmente
eu seria identificado pelos CSIs brasileiros, mas aí já seria tarde.
Comecei a me preocupar. Em nome de
uma aventura eu estava soterrando a lógica. Resolvi mandar um e-mail dizendo
que não estaria em casa ou no trabalho, mas em uma reunião. De lá eu iria para
o nosso encontro. Pedi o endereço.
Ela percebeu minha desconfiança e
respondeu numa única frase:
Não sou uma daquelas psicóticas dos filmes,
era só uma surpresa.
Logo abaixo vinha o endereço de
uma cantina no Bixiga.
Cheguei um pouco antes do horário
e me sentei no bar. Havia uma reserva no meu nome. Geórgia ainda não havia
chegado. A cantina era muito acolhedora e pelos
aromas que vinham da cozinha eu podia esperar uma comida tão boa como o
repasto do Giácomo.
Repassei os fatos e percebi que
estava nervoso. E se ela fosse.. sei lá... muito chata, ou obsessiva, ou...
O garçom tocou no meu ombro:
– Senhor, a jovem naquela mesa me
pediu para lhe entregar isto.
Era um desenho de carvão-baton. O
meu retrato. Olhei para a mesa no canto e vi Geórgia. Ela tinha cabelos
castanhos lisos, e estava de costas.
Fui até ela e me apresentei, meio
tímido:
– Olá, sou Javier, como já deve
saber...
Ela sorriu. E eu vi que aquele
rosto não podia ser de uma psicótica.
– Olá – e fez um gesto para que eu
me sentasse.
– Você reservou uma mesa para nós
e sentou-se nesta aqui?
– Queria desenhar seu retrato
quando chegasse.
– Está muito bom! Você é artista
plástica?
– É só um hobby. Sou
jornalista.
– E foi a Pimonte a trabalho?
– Estava a serviço do Instituto
Histórico e Geográfico. Pesquisei na
biblioteca da Universidade para meu artigo. Lá eu vi sua tese e soube que
jantava no Giácomo todas as noites.
– Em cidades pequenas não há
segredos... Mas como sabia que eu iria gostar dos seus desenhos?
– Eu não sabia.
– E da minha chegada ao Brasil?
– Estávamos no mesmo hotel e a
gerente conversava muito comigo...
Hoje nossa filha faz quatro anos.
Resolvi levá-las a uma cantina no Bixiga, pois minha bambina – que adora comer
massas e desenhar histórias no papel sulfite – me colocou contra a parede:
–
Papai, não sou mais criancinha! Se você não me contar como conheceu a
mamãe eu vou desenhar a história do meu jeito!
Essa é minha sina. Criativa e decidida:
igualzinha à mãe!
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